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m LISBOA DE HOMEM
1871 ou 1872 sendo adJido da legação portugueza em Dinamarca um dos raros elegantes portuguezes, novos, que tem dado que fallar de si no estrangeiro pelo luxo de vestuário, trens, despesas grossas e, principalmente, pelo amor á excentri- cidade, o sr. Jeronymo Condeixa, teve de ver com sm'presa que, apezar da sua juventude e da flor de mocidade que de- veria dar-lhe sobre o vellio ministro uma superioridade que não seria para estra- nhar, attenta a edade d'aquelle principe da élegdLuádi, princeps elegantiarmn, Sto- ckolmo lhe chamava, como para lhe fa- zer sentir que elle ia apenas no caminho alcibidiaco que o outro já conhecia mais, o Sotto Menor, Mr. Sotto Mineur, para lhe marcar bem a patente inferior em proporção para com Sotto Maior.
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O meu conhecimento com António da Cunha foi o caso maisgallante, direi me- lhor,— o menos gallante, mas o mais excêntrico que tem havido n'este mundo. Eu tinha dezoito annos n'esse tempo. Um cavalheiro cujo nome não vem para o caso, havia-me convidado a ir ao baile de S. Carlos, no Carnaval; elle tinha um camarote que uma velha do seu conlie- cimento havia offerecido a uma pessoa que lhe era querida, e a quem elle acom- panhava. António da Cunha Sotto Maior fazia a corte a essa pessoa, corte que o próprio cavalheiro nada tinha que estra- nhar, porque parecia limitar-se a olhal-a com attençâo, cortejando-acom a delica- desa de um gentleman e o respeito afíe- ctuoso de um admirador. Entretanto os zuns zuns da vida, a diligencia que a
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30, Rua Nova do Almada, 36
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ESCRIPTORIO 24, Rua Nova do Almada, 2,
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Do mesmo modo que o prestigio das velhas dynastias se altera com as res- taurações incompletas, assim as cidades perdem do seu caracter com os concer- tos e arranjos a que as sujeitam. Por pouco que recordemos atrasados, ah! que de vohas não tem levado tudo isto de ha trinta annos para cá!
Aqui vivia, mais sinceramente, aber- tamente, a mãe
Pacliorra
Imaginem luzitana, imagem clássica por excellencia, de tão incontestável for-
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mosura e grandeza para nós que não tem podido envelhecer de todo. e ainda parece ás vezes conservar a mocidade das coisas immortaes, de tal maneira se prende aos nossos sentimentos, indepen- dente dos tempos, dos meios, da civili- sação.
De tempos a tempos, pelas cartas do Braz Tizana, escriptas no Porto por José de Sousa Bandeira sobre informa- ções que d'aqui lhe mandavam, primeiro publicadas no Periódico dos Pobres e depois no jornal que tomou por titulo o pseudónimo do famoso folhetinista da cidade eterna, constava que a camará municipal, depois de uQia sessão re- nhida, ia dar mais dois candieiros á capital.
O correspondente porque ainda não
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estivessem em uso os chavões jornalís- ticos de:
« Parabéns á illustre camará. . .
« Registremos este acto do festejado vereador. . .
Limitavam-se a fazer a diligencia de que o leitor se compenetrasse bem de que, para o fim do anno, com o estabe- lecer a arithmetica que tinhamos mais dez candieiros, era o mesmo que dizer que estávamos dez vezes mais esclare- cidos do que no anno antecedente.
Assim íamos constantemente creando novas luzes, o que não impedia que, no centro mesmo da cidade, qualquer das ruas de maior transito tivesse apenas no espaço de cem metros um candieirito, que servia optimamente para fazer sobresair o horror dos sítios menos favorecidos.
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Principiava então a moda, que ainda dura, de não se passar dia sem que os jorna es recebam certo numero de cartas em que diversos leitores assiduos lhes revelam acliar-se a lua tal n*um estado deplorável, nunca ser varrida a outra, esla precisar calcada, e aquella estar perigosissima. Enchiam columnas os jor- naes com esta escripta gratuita, aprovei- tando com avidez esse benéfico maná. O presidente de uma camará, ao entrar no exercicio d"aquellas funcções entre graves e recreativas, deu ordem para que se tomasse nota todos os dias nos diversos jornaes da capital, de tudo que tivesse relação com o municipio e com os serviços vários que estivessem de- baixo de sua gerência. No fim da semana, quando o digno presidente viu desfilar
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na sua presença, marginadas a lápis en- carnado pelos seus empregados, as dif- ferentes reclamações, teve occasião de verificar que a opinião da imprensa é sempre respeitável; erespeiiou-a aponto de não pensar mais em a consultar, para evitar que os agentes do município per- dessem o seu tempo: — toda a cidade precisava concerto! . . .
Um pobre homem que se perdesse de noite por essas ruas barrancosas, ia aos tombos de abysmo em abysmo, escor- regando no cascalho, esbarrando nos frades de pedra, caindo de ventas nos montes de caliça.
De meia em meia hora encontrava-se um candieiro, de luz indecisa e frouxa; só o que chegasse para uma pessoa conhe- cer que se havia enganado no caminho.
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A ladroeira hoje em Lisboa está sendo audaz. E um progresso que eu noto com estranheza, porque, proveniente de ser- mos um paiz pequeno, tudo entre nós vae de vagar menos isso, diga-se a ver- dade, menos isso; e folgo de poder dar desde já este testemunho de imparciaU- dade.
Já d'antes tinhamos bastantes ladrões, mas eram verdadeiramente o que se cha- ma em linguagem jornalística «ladroeira frequente, porem pouco importante». Ladrões timidos. neophitos inexperien- tes, discipulos de um professor que não podia mecher-se, o famoso coxo, que estacionava no Terreiro do Paço, á porta da Aula do Commercio.
Toda a gente conhecia esse coxo ; to- pos os homens que teem hoje quarenta
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e tantos annos se lembram d'elle; ladra- vaz reformado, caixa dos furtos. Man- dava os seus delegados para difíerentes juntas de consideração, para o jardim da Alfandega, para o Tivoli, para os iheatros da Rua dos Condes, de S. Car- los, do Salitre, para a porta das egre- jas, e arrecadava depois paternalmente o fructo d'essas diligencias, de umas ve- zes recompensando logo os gatunos, de outras encarregando-se laboriosamente da venda dos objectos e dividindo o pro- ducto com equidade.
Fazia bem a muita gente, e sabia di- rigir todos com a prudência de seus con- selhos. Os gatunos de hoje vão para o governo civil, e, não contentes de fugi- rem de lá meia hora depois, levam dos quartos da policia alguma roupa que por
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lá apanham. Ha bem pouco que fizeram islo mais uuia vez. Se fosse no tempo d'elle. veriam correrem as coisas de ou- tro modo, e elle dir-lhes-ía conforme seu animo generoso lh'o dictasse:
— Não convém, filhos, dar a perceber ao vulgo que a policia seja ainda mais tollâ que prevaricada. D'ahi a concluir- mos que ella é de todo ridicula, inútil e despresivel; iria um passo. Saibamos guardar as conveniências!
Pela proximidade cm que vivia das aulas, creára amor á sciencia; e con- versava a meudo com os estudantes,, que lhe eram em geral afieiçoados por seu modo jovial e pela liberalidade com que elle lhe emprestava seu pinto de vez em quando. Para invenlar, por assim dizer, um freio, que repremisse no declive das
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extravagâncias as paixões juvenis, accei- tava-lhes os livros em penhor: mas, para que não perdessem a sede de saber, dei- xava-os ler á tarde, pelo compendio em reféns, a lição immediata ; guardava-o em seguida outra vez, e, de manhã, quando, no seu dizer, a memoria estava mais fresca, elle próprio encostando o livro á muleta e abrindo-o na devida folha seguia com a vista a lição que o estu- dante repetia, e lha emendava em ha- vendo erro:
— Vejamos agora, dizia o coxo, apon- tando como o ponto do theatro, o que resulta da expressão algébrica da tan- gente . . .
E o escolar ia dizendo.
Era amigo da mocidade e sabia auxi- lial-a com ideias sãs:
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— Quando os meninos forem depula- dos, proponham uma lei que diga : lodo aquelle homem que pelo correccional fôr condemnado em mais de um anno de prisão e que no tempo em que estiver preso adquirir algum dos conhecimen- tos que passo a mencionar, verá dimi- nuida a pena nas proporções que vou dizendo : Se aprender a ler, dar-se-lhe-ha baixa n*um mez de prisão; a escrever, outro mez do prisão; as quatro espécies, outro mez da prisão; guitarra, canto e geometria, três mezes de prisão . , . Et coetera.
Pessoa a quem nas ruas houvessem roubado a bolsa ou o relógio, ia procu- rar o coxo; um ou outro, por conhecer menos os costumes, dirigia-se á policia, o que não linha conveniente senão o de
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uma pequena demora: porque, iam em seguida consultar o coxo, a policia e elles.
A segurança dos prédios e garantia dos moradores eram os sapateiros de escada.
O sapateiro de escada, typo essen- cialmente, completamente portugiiez, foi por muitos annos a providencia dos in- quilinos e o confidente dos namorados. O namoro lia trinta annos tinha attingido em Lisboa proporções vastissimas; o sa- pateiro de escada não era um simples mensageiro de amor, era o espirito mo- derador entre a paixão e a dignidade: protegia Leandro, mas zelava os direitos da auctoridade, e a virtude do lar; in- cumbia-se de levar e trazer cartas, mas lia-as primeiro, em parte por enlreteni- . mento, em parte por moralidade, e,
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sendo preciso, dava-as lambem a ler aos pães. Era o homem de confiança da es- cada. Pagava aos boleeiros o aluguel da traquitana, indo elle mesmo chamar a sege á praça e recebendo d'elles uma precentagem, á maneira do que faz a Sapa, em Cintra, aos cocheiros que pre- ferem a sua casa a outra; espreitava os criados nas compras que faziam, discutia com elles, sendo preciso, o excesso dos roes, dava informações dos inquilinos, ajuisando dos seus haveres pelo que cada um comia em sua casa; sentava-se de noite á porta cantando em ar de bê- bedo, para não lhe escapar coisa alguma do que se passava na visinhança; e ac- ceitava uma de seis, que é como se dizia d'antes seis vinténs, por qualquer epis- tola que levava, com a dignidade de
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um banqueiro ao receber o juro de uma transacção. A lembrança d'esse func- cionario parece recordar-nos a pátria ausente.
Em casa que não tivesse este guarda amigo, estava-se sempre em cuidados de não deixar aberta a porta da rua. Os ladrões, ainda pittorescos, entravam então pela janella. Um dos homens mais engraçados d'cssa época, vivo ainda Iioje, o sr. Domingos Ardisson, sabendo que era esse o costume d'elles, não se deu ao encommodo de fechar a janella do seu quarto n'uma noite de verão. Unica- mente, por precaução de scenario, poz um par de pistollas á cabeceira. Pelas três horas da noite, o ladrão appareceu, es- preitou, e entrou. Logo que o viu, agrada- velmente entretido, abrir uma gaveta, o
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sr. Ardisson sentou-se na cama, apon- toií-lhe uma pistoUa, e com serenidade:
— Ponha para ahi o que traz com- sigol lhe disse.
O ladrão queria ajoelhar. — Nada de altitudes. Quanto traz comsigo? Gonserve-se de pé. . .
— Senhor. . .
— Conserve-se de pé. e responda!
— Dezoito tostões, senhor! — Deixe-os ver.
— Que os deixe vêr!? para que?
— Para os pôr ahi quietinhos. íjuer antes um tiro?
Gesto negativo.
— Venham os dezoito tostões!
O ladrão, com ar mortificado despe- jou o bolso e ia de novo saltar pela ja- nella, quando, por attender aos preceitos
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da hospitalidade, o sr. Ardisson lhe of- fereceu um phosphoro.
— Um phosphoro?!
• — Para descer a escada!
E convidou-o gentilmente a sair pela porta, assegurando-lhe sob palavra de honra, que por igual preço poderia vol- tar quando lhe approuvesse.
Succediam a cada instante os casos mais chistosos promovidos pela larapice, e fazendo ella má figura, pelo contrario de hoje, que, animada pela gloria que lhe reverte de rir da perspicácia dos An- tunes, tem quasi sempre o melhor papel nas lUiadas que empreende. De uma occasião, por exemplo, entrou com uma chave falsa n'um terceiro andar, ao soc- corro, um gatuno.
Fechou a poria, visitou os moveis em
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que havia chave, explorou os cantos á casa, e, nâo achando dinheiro nem coisa que o valesse, tratou de se vestir dos pés até á cabeça, á custa d'aquelle mo- rador.
Escolheu calça, sobre casaca, coUete, um chapéo aUo, e umas botas de poli- mento, que era até um calçado de que elle sempre gostara e nunca tinha tido. Depois, foi-se á commoda, que estava cheia de roupa, escolheu uma camisa fina, abriu-a e estendeu-a sobre a cama.
Feitos estes preparativos, despiu-se.
Na occasiâo em que ia mudar de roupa, ouviu bulha na escada. Apurou o ouvido. Os passos vinham a chegar-se. Pararam á porta . . .
— Oh ! com a breca ! murmurou elle. Metteram a chave na fechadura. ..
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E elle, zás, acocorou-se e sumiu-se para baixo da cama.
Aberta a porta, entrou quem quer que era.
O ladrão coitado, não podia ver-lhe senão os pés e um pedaço das pernas, girando, de um lado para o outro, com pressa, com muita pressa. . . E elle tudo era acachar-re, sem bulir, a tremer do que iria sair d'aquelle caso.
Nem talvez cinco minutos fossem pas- sados, quando o recem-chegado se diri- giu para a porta e foi pela escada abaixo.
O malfeitor saiu da íocca.
— Apre! disse elle. Safla! Apanhei um susto ! Mas. . .
A camisa já nâo estava em cima da cama! e o fato, que havia tirado das ga- vetas, também tinha desapparecido!
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— Que pena! balbuciou elle. Por um boccadinho !
Rcdusido a ir outra vez buscar a sua própria fatiota, chegou-se aos pés da cama onde a deixara, e poderá calcu- lar-se o pasmo em que ficou quando a nao viu.
— Que é do fato? dizia elle. Que é do fato!?
E; por cumulo de desgraça, as gave- tas da commoda estavam vasias, e a roupa desapparecêra.
O individuo que o ladrão cuidara ser o domno da casa, era nem mais nem menos do que outro ladrão, que fizera a sua trouxa e se puzera a andar.
A reflexão é uma coisa óptima, mas leva tempo, e emquanto elle eslava a me- ditar sobre qual seria a melhor maneira
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de se tirar dos apuros em que se via, veiu o homem que morava n'aqiiella casa, e, pela desordem em que ali estava tudo, percebeu que era victima de um roubo, como diz o povo, de fresco, por isso que nâo estivera fora de casa mais de meia hora.
Ao entrar ivuma saleta; deu de cara com o qiiidam em completo estado de nudez, acanhado, perpelexo.
Sem poder atinar com com as expli- cações de um caso de tanta maneira ce- lebre, intimou-o a que o acompanhasse á casa da guarda, e deu-lhe um cobertor para se embrulhar.
No patamar, quando já iam a sair, disse-lhe o ladrão :
— O meu senhor?
— Que é?
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— Onde é que vamos? — A estação próxima.
— Para fazer o que? Para vossa se- nhoria me deixar preso ? ! Isso é o resul- tado de não fazer reparo n'uma coisa, e é a seguinte: — que eu é que fui rou- bado! O que lucra em me fazer mal? Não lucra nada. Nem a policia poderá occupar-se d'este negocio, porque não tem tempo!
— Não lem tempo . . . Sim, isso, tam- bém, é verdade!
E tudo estava dito.
Não ter tempo! — Quereria ler isto, quereria escrever aquillo, ver esta pes- soa, desempenhar aquelle dever, mas não tem tempo, não tenho tempo, não ha tempo ... De quantas locuções banaes, de todas as palavras que o rio das con-
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vcrsações de cada dia revolve no seu curso, não ha outras que saiam em Lis- boa ainda hoje com mais frequência do que estas :
aSsío tei' tempo I
E o caso é que o tempo falta, falta porque não descemos a querer aprovei- tal-o. Temos tempo, — temol-o á farta — mas recreamo-nos em dar cabo d'elle como se tivéssemos a eternidade ás nos- sas ordens. Fogem com a rapidez dos relâmpagos os dias, os mezes, os annos: vem cada passo chegando-nos mais ao termo da vida, mas não trememos! O que vae, vae. Roma não se fez n'um dia. A mandrice é uma prenda, n'um povo que sabe conservar como documento das descobertas e expedições antigas este
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resto de soberania, a que se chama — nâo fazer nada. Por isso olhamos com desdém para o gallego, esse bruto vil que trabalha!
E o mais é que de 1836 a 1850 a policia em Lisboa não tinha effectiva- mente tempo senão para andar na pin- gada das conspirações. Toda a gente conspirava. Não se fazia mais nada, não se tratava de outra coisa. As revoluções succediam-se. quasi sem intervallo. Nin- guém se entendia, ninguém já sabia o que queria ; febre de conspirar, de mu- dar, de alterar, de desbancar: capricha- va-se em que Portugal deixasse de ser mudo; reinava um appetite invencível de revolver tudo. Já não havia portuguezes, já não havia liberaes, havia patuleas, setembristas, cartistas, cabralistas . . .
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Ma dottore, mia parola . . .
Chc parola! Não havia tempo! Era preciso conspirar, fundar sociedades se- cretas, escolher um grâo-meslre inicia- dor, fazer discursos incendiários, planos terrificos:
— -Põe ahi a mão na chamma; põe a mão na chamma. põe a mão, faze o que te digo: para te lavares de toda a iniqui- dade. Põe-a agora n'este papel, e a outra mão no coração, e jura para ahi, jura que has de trabalhar com todas as tuas forças para que se propaguem os nossos princípios, os princípios do nosso parti- do .. . Jura que matas o Gosta Cabral, se fôr preciso?
— Juro.
— Jura três vezes!
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— Juro,, juro, juro.
— Jura que has de matar a rainliíi, sendo necessário.
— Juro, juro, juro!
— Resignas-íe á morte, tu próprio, só para que triumphem as nossas ideias e possamos abater o J^sé dos Cónegos e mais o. . .
— Resigno.
— E levas em gosto que te queimem o coração, e que t*o façam em torresmos e deitem ao vento as cinzas, no caso de nos atraiçoares . . .
— Palavra !
— E se a Ignm de nós revelar este se gredo, vaes-te a elle e matal-o?
—Mato.
Mettia medo !
As eleições n'esse tempo eram mode-
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nhãs. Substiluia-se a vontade tyranni- ca, o capricho despótico, á liberdade dos cidadãos. Não se esclarecia o es- pirito que devera encaminhar a mão; não se indicava a escolha, as razões de se dever fazel-a: ia-se de pistola aos peitos, de varapau, de casse-íéte — esta- vam muito em moda — fazia-se desor- dens nas egrejas, forçavam-se as urnas, atropellava-se tudo, e triumphava-se gen- tilmente pela força e pelo terror. Con- tava qualquer, como caso corrente, o syslema engenhoso e galanie que ado- ptara para a sua freguezia: escondia-se na egreja, deixava sair toda a gente e fecharem-se as portas, ía-se ás urnas, tirava as listas, e, de manhã, quando o sachristão entrava, fazia-lhe presente de uma bofetada que lhe vendasse os olhos,
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e aproveitava esse ensejo de se pôr ao fresco.
Nunca mais Lisboa, desde então, ver- dadeiramente conspirou. Querem ainda, de tempos a tempos, figurar isso, mas, como nos pequenos theatros, não temos companhia, e são os próprios actores uns relles comparsas, que se apressam em enterrar a poça antes d'ella subir á scena. Diz então a gente por ahi aos conspiradores, quando os encontra:
— Então vocemecé anda conspirando?
E elles, com modéstia:
— Ora, não é tanto assim!
— Já cá se sabe Indo . . .
Elles com uma anciedade imporlanle:
— Serio!?
Nós, para os enganarmos:
— Foi graça.
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Elles com despeito: — Não, o meu amigo qiie o diz, al- guma coisa sabe . . . — Não sei!
— Palavra de honra? — Palavra de hom'a.
— Ah! enlão, eu lhe conio . . . E conta-nos a conspiração.
Pelas ultimas sarafuscas que houve, lemerosas pelo prologo, como as velhas peças do Salitre, estava eu em casa quando veiu dizer-me um doestes ami- gos que andam mais bem informados:
— Pois tu ainda aqui estás?! Arran- ja-te, vamos, avia-te; ha baralho!
— Ha barulho? Porque?
— Isso depois! Arranja-te! Despacha.
— Aonde é o barulho?
— Ha de ser logo, ali pelo Rocio . . .
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No Martinho é qae se sabe! Isso sabe-se sempre no Martinho! . . .
Vesli-me á pressa: larguei a correr como um gaiato de caixas de assucar — não deixemos cair em desuso esta locu- ção nacional, — até ao sitio indicado: era ainda cedo: encontrei tudo socegado.
— Não me deixaste jantar, amigo meu!
— Não tem duvida. Vamos á rua do Principe, ao biffe.
— Pois sim. Mesmo para fazer horas é conveniente, e, se a policia nos vir es- tar a comer; não desconfiará de que eu esteja ao facto do que tu me informas- te, mercê de andares sempre em dia com esjas coisas.
— Calluda.
Jantei ao lado de um sujeito que se
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entretinha solitariamente com um bitie- sito velhote: a modo de biffe da vés- pera, biffe reaccionário; como que um simptoma pohtico ! . . . Diacho I Comi á pressa, ancioso de ir para o foco.
— Vamos para o foco?
— Vamos.
Conversações animadas; magotes fus- cos; segredos aos ouvidos uns dos ou- tros; alguns apertos de mão. Lobriguei no Suisso gente a tomar café. militares sentados fraternalmente em bancos, jo- gando o xadrez e funíando . . . Foi-me grato vèr esses bravos, n'uma tal hora, descansarem pacificamente de sua activa vigilância; a dois passos d'elles, mais militares: depois um grupo, depois ou- tro, e uma infinidade d'elles ; e ahi entrou
um capitão, de grandes bigodes, disse 3
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adeus a um e a outro, foi desarmar-se a um canto e bebeu depois genebra, a uma mesa onde estavam também dois furriéis. Não fallou com elles, mas não desdenhou estar a seu lado, e aquelle comportamento democrático teve logo para mim uma alta significação poli- tica.
Veiu um que é da policia sentar-se á mesma mesa em que estávamos, e não tirou os olhos de nós. Eu por disfarce, disse ao meu amigo:
— Queres tu jogar o dominu?
Mas o policia tudo era olhar-nos fixa- mente :
O meu amigo, resolutamente, respon- deu-me:
— Não!
O da policia disse-me:
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— Se me acceita para parceiro, aqui estou.
— Com muito gosto! respondi, eston- teado já pela ebriedade revolucionaria. Joguemos !
Veiu dominó.
— Jogamos a copos de genebra? per- guntou o da policia.
— A cognac.
— Venha cognac !
— Do fino! grilou o criado n'um tom, que parecia assoviar uma ironia ao sys- tema que nos rege.
Uns que estavam á entrada, disseram entre si olhando para a nossa mesa:
— x\quelles são da obra! Lá está já a policia com elles.
Formaram-se grupos a observar-nos. Vieram mais bolegins para a porta.
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Jogámos alguns copinhos, e o policia foi quem perdeu, ou antes, quem per- deu foram os fundos secretos.
Entretanto, desde aquella hora, ficá- mos compromettidos.
— Vamos ao Martinho? disse eu ao
meu amigo.
— Vamos lá! disse o outro.
E fomos.
Á excepção de dois rapasitos, que estavam ali aprendendo a beber sem ter sede, não estava lá mais ninguém do que nós — de policia atraz.
— Diga-me cá uma coisa, perguntei ao moço, aqui nunca vem mais gente?
— Das oito ás nove, o poder do mun- do. Antes, c depois, ninguém.
— E boa! Vamos ao Rocio, sem de-
mora!
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Fomos ao Rocio. Lá estavam alguns passeando, outros como que a desfiarem idylios; sentados nos seus banquinhos, de costas voltadas para o fundador da liberdade, verdadeira attitude de disfarce para revolucionários, que luctem contra a influencia do governo, entretendo ali os seus conciliábulos até soar a hora gloriosa . . . Como vissemos o homem da bilha pedimos-lhe um copo d'agua, e bebêmol-a, perdidos na conspiração c na noite. Depois, fizemos meia volta á di- reita e dirigimos-nos para nossas casas. O pianista das Figuras de cera, commo- vido da situação em que nos vira, mimo- seou-nos de longe com o quer que fosse do Oífenbach . . .
— A coisa estcá feia! dissemos em casa, ao recolher.
38 LISBOA DE HONTEM
A cidade, antigamente, auxiliava pela escuridão, a boa mise-en-scène d'estas farças. Agora ha luz de mais para tão pouco assumpto. Era tudo quedo, tudo soturno, e morto. Apenas o pregão de algum aguadeiro, aqui ou ali, roncando lugubremente:
— Aíi.
As lojas maçónicas trabalhavam com anciã desde as Ave-Marias, em suc- cessivas iniciações, e as sociedades po- liticas limpavam os neophitos de toda a docilidade, obrigando-os a juramen- tos gravíssimos, para cpie ajudassem a dar cabo de todos os tramas no mais breve espaço de tempo. Passava-se po- rem tudo em sessões, e nunca essas paixões exaltadas fizeram outro mal que não fosse o de moer a paciência de
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quem ouvia os discursos que ellas inspi- ravam.
Em se saindo do Chiado, e da baixa, mudava logo o aspecto da população; a cidade era outra: ruas velhas, ruas tos- cas, que offereciam mediocre interesse aos archeologos e pareciam ter sido edi- ficadas em plano de labyrintho para que uma pessoa inexperiente com difficul- dade encontrasse sabida . . . Cidade de provincia. Sem cerimonia. Cordas á ja- nella com roupa a seccar. Gallinhas á porta; rebanhos de rapasilos a brincarem nas escadas, accocorados nos degraus aos cinco e aos seis, o mais velho com o mais novo ás costas . . .
Á hora de largar a agulha fallava-se de janella para janella. O facto de ser visinho authorisava a Iravar conheci-
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mento. Pedia-se um ramo de salsa, um fio de azeite ... Ao cair da noite fecha- va-se toda a gente nos differentes an- dares do prédio, como objectos que se arrecadassem nas gavetas de uma com- moda. Tinha-se horror ao movimento. Ninguém suspeitava que a actividade, a distracção, pudessem agradar ás cre- aturas, e que até a rasão se recu- se, por algum modo, a admittir que haja felicidade immovel e sempre igual, por mais completa que seja, — doutrina que não deve parecer opposta ao senti- mento religioso que governa as crea- turas, porque a contradição é só na apparencia, visto não estar ainda deter- minado que júbilos nos sejam promet- tidos para depois de morrermos, nem haver motivo para que se nos affigurem
LISBOA DE HOMEM 4i
com a perspectiva de um descanço esta- gnado !
E entretanto, coisa natavel, foi por entre a monotonia d'essa vida velha, que surgiram os homens mais importantes dos uhimos tempos de Portugal! E isso na politica, nas lettras, nas artes, na sciencia, na elegância até!
A geração nova olhou para elles pas- mada; e achou-os excessivos, achou-os exaltados . . . Quando um d'elles ouviu isto, sorriu-se, e, em plena sessão do parlamento, atirou-lhes em resposta um improviso, que bastaria para ganhar fama de eloquente a um orador: depois de lhes ensinar o que eram os exaltados, quiz mostrar-lhes também no que vinha a dar não o ser . . .
— Não exaltado, disse elle, foi o se-
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nado de Tibério, quando subscrevia os caprichos d'aquelle furioso : não exaltado era o senado de Diocleciano, quando as- sentado nas sedes curues discutia em que caçarola devia coser-seo redovalho: não exaltados foram os cônsules de Ca- lígula, quando aceitaram para seu com- panheiro o cavallo Incitatus : não exaltada era a dieta de Stockolmo, quando estava para ser presidida pela botta suja de Carlos XII : não exaltada é a lama das ruas, a vasa das marés, o lodo das praias, e a poeira das praças!
Chamava-se António da Cunha Sotto Maior, o que assim deffendeu os exal- tados. Que original, esse António da Cunha! Vejamol-o um pouco, fora das exaltações da vida publica: mais curioso parecerá; porque, desde que o mundo é
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mundo, e em toda a parte, sempre os grandes homens procuraram distrair-se da gloria que os acompanha, e não ha mais curioso exame do que o de obser- var os homens de talento na occasião em que descançam. Conta-se que estando em Londres o anão Tom Pouce, que alU chegara havia apenas vinte e quatro ho- ras, e fora morar para um hotel que ha em Leicester Square Leicester Place, o hotel da viuva Granara, tambcm chamado hotel da Europa, estava alli um estran- geiro — sempre é bom que se diga já que não era portuguez, conforme, pelo me- nos, ao que me aííiançaram quando lá mesmo em 1862 me contou esta historia um dos creados do hotel, que era italiano e me tratava nas palminhas desde um dia em que viu o tenor Tamberhk, que
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era o seu ídolo, dar-me a honra de ir visitar-me; — estava alli um estrangeiro e, á mesa, o estrangeiro disse a quem o quiz ouvir:
— Tenho pena que o Tom Pouce es- teja por um preço fabuloso ; dois guinéus para o ver, acho pesado! Em estando mais barato, heide ir vel-o eu também!
— Anda por ahi n"uma carruagem, é espreital-o!
— Impossivel. A carruagem é tão pe- quena e elle vae tão escondidinho dentro (i'ella, que não ha pescal-o! Esperarei que baixe de preço . . .
— Porque preço lhe faz conta?
— Para ver um anão tão possante e proporcionado como dizem que elle é, acho bem empregada meia libra: mais, nem um pejiny . . .
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— Pode vel-0 de graça, se quizer! — De graça!? — De graça.
— D'essa maneira ainda me parece- ria mais curioso. Como hade ser?
— Elle está no primeiro andar . . .
— Está, sim.
— O meu amigo está no segundo . . . — No segundo é que eu moro, no
quarto 78.
— O quarto d'elle é o 16: o meu amigo de manhã desce do seu quarto para ir tomar um banho: mette-se pelo corredor onde avister o numero do quarto: elle ás sete horas está sempre a pé, ba- ta-lhe á porta.
— Bato-lhe á porta . , . — Elle cuida que é o creado, e abre: o meu amigo olha para elle, vê-o bem,
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pedc-lhe desculpa de se haver enganado e ter batido na porta 16 em vez da por- ta...
— 78, que é a minha!
— Isso mesmo; em vez da porta 78, que é a sua, no segundo andar; íacil equivoco! Pedidas as desculpas, viu o Tom Pouce, apenas chegado a Londres, Tom Pouce fresco, e de graça ! . . .
— Já amanhã vou fazer essa! Quarto 16?
— Quarto 16.
Na manhã immediata o amável espe- culador levantou-se ás seis horas e meia; vestiu-se; desceu ao primeiro andar e bateu á porta do quarto 16.
— Quem está ahi ? perguntou de den- tro uma voz grossa e formidanda.
— Faz favor de abrir.
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x\briu-sc a porta e appareceu um ho- memzarrão immeiíso e tremebundo, o famoso Lablache, cantor, o ligarão mais alto e mais gordo que a Inglaterra tem contemplado.
O estrangeiro, sem se lembrar que por maganice haviam cassoado com elle in- dicando-lhe o quarto doeste gigante em vez do quarto do anão, balbuciou timi- damente :
— Hade desculpar, senhor. . .
— O que?
— Creio que me enganei . . .
— Ah\
— Procurava . . .
— Quem?
— O sr. Tom Pouce?
— O anãosinho Tom Pouce . . .
— Sim, senhor. . .
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— Sou eu.
— É O senhor!?!
— Sou eu.
— O sr. é que é o sr. Tom Pouce! A mim tinham-me dito que elle era tão pe- quenino, tão pequenino . . .
— Sim, mas, quando estou só, ponho- me á vontade!...
Assim acontece de algum modo aos ho- mens de talento. Surpreendel-os quando elles estiverem á vontade, é vero que ha mais differente de elles próprios ; não é só pelo que respeita a maneiras, a excen- tricidades, a celebreiras, como as que se citam do marquez de Pomnal gostar de exercicios fatigantes e ter havido quem o visse sahar mesas e cadeiras, o Bocage comer papel, Rebello da Silva comer as unhas a deixar o sabugo em sangue. Ca-
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millo Castello Branco fazer sociedade com um gato como dois amigos para a vida e para a morte : ha muito da naturesa de creança em todo o homem de talento; isso é sabido, mas o que é para ver^ é quanto mesmo aquelles que não são ex- cêntricos differem na vida intima e em tudo que verdadeiramente revehi o ho- mem, do conceito que o mundo quer sempre formar d'elles e da apparencia que elles mesmo se dão.
António da (Ainha Sotto Maior, que é hoje ministro de Portugal em Stockol- mo, foi aqui um taful d'estrondo, um elegante legendário, um janota da raça dos Alcibiades. Parece que ainda hoje por lá conserva grandes restos do antigo dandysmo. e que não abdicou ainda das exagerações que o caracterisavam. Em
SO LISBOA DE HOMEM
1871 OU 1872 sendo adJido da legação portugaeza em Dinamarca um dos raros elegantes portuguezes, novos, que tem dado que fallar de si no estrangeiro pelo luxo de vestuário, trens, despesas grossas e, principalmente, pelo amor á excentri- cidade, o sr. Jeronymo Condeixa, teve de ver com smpresa que, apezar da sua juventude e da ílôr de mocidade que de- veria dar-lhe sobre o vellio ministro uma superioridade que não seria para estra- nhar, attenta a edade d*aquelle principe da e\egàuá3.,pnncepselegantiarnm, Sto- ckolmo lhe chamava, como para lhe fa- zer sentir que elle ia apenas no caminho alcibidiaco que o outro já conhecia mais, o Sotto Memi\ Mr. Sotto Mineur, para lhe marcar bem a patente inferior em proporção para com Sotto Maior.
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O meu conliecimento com António da Cunha foi o caso maisgallante, direi me- lhor,— o menos gallanle, mas o mais excêntrico que tem havido n'este mundo. Eu tinha dezoito annos n'esse tempo. Um cavalheiro cujo nome não vem para o caso, havia-me convidado a ir ao baile de S. Carlos, no Carnaval; elle tinha um camarote que uma velha do seu conhe- cimento havia oílerecido a uma pessoa que lhe era querida, e a quem elle acom- panhava. António da Cunha Sotto Maior fazia a corte a essa pessoa, corte que o próprio cavalheiro nada tinha que estra- nhar, porque parecia limitar-se a olhal-a com attençâo, cortejando-a com a delica- desa de um gentleman e o respeito affe- ctuoso de um admirador. Entretanto os zuns zuns da vida, a diligencia que a
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inveja, a ruindade, a cobardia fazem sem- pre de prejudicar alguém, levara porven- tura ao seu distrabido ouvido, por mais de uma vez, como que nas azas de uma intenção maliciosa, o nome de An- tónio da Cunba.
Chegáramos a S. Carlos, o tbeatro estava cbeio de mascaras e de curiosos, rompemos pelo sallão, trepámos a larga escadaria, e eis-nos n'um camarote de segunda ordem. Por baixo zumbia a fal- lacia das mascaras, e a bulha da orches- tra: n'esse tempo não se dava opera em S. Carlos na noute de baile. O calor era immenso, e, de mais a mais, o camarote ficava por tal forma fronteiro ao lustre, que a vista pcrlurbava-se. O cavalheiro disse:
— Que calor! e que camarote!
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A pessoa querida não se queixou.
— Vamos lá abaixo! disse elle para mim.
FoQios lá abaixo.
— O Júlio, você visto ser traductor do Gymnasio, deve por força conhecer o Maia ?
— Qual Maia?
— O Maia camarotciro de S. Carlos, que, quando não está mettidonasua res- pectiva tócca de camaroteiro, está sem- pre no Gymnasio . . .
— Conheço, sim; o Maia alto, que tem o mais bonito burro das duas Castellas.
— Isso; você falia- lhe? — Fallo, fallo-lhe todos os dias. — Magnifico; vamos nós ver se elle nos troca o camarote . . .
— Pois vamos.
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O Alaia camaroteiro estava no exerci- cio das suas funcções, entregando cha- ves, tomando nota, recebendo dinheiro. E o mesmo Maia hoje dono da casa de pasto do Campo Grande, que faz esquina á estrada que segue para o Lumiar.
— O sr. Maia, disse-lhe eu, seria pos- sível trocar por outro o camarote numero tantos?
— Trocar outro por esse? — Vem a dar na mesma.
— Com a diflerença de que o sr. Ma- chado engana-se no numero, esse cama- rote que me diz parece-me que é do . . . Veja ahi na lista, faça favor, que eu não posso agora interromper o que estou fa- zendo . . .
E, continuando a contar dinheiro, in- dicou-me a lista.
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Olhei : adeante do numero do cama- rote, lia-se — António da Cunha Sotto Maior.
Olá!
Felizmente o cavalheiro de quem eu era convidado entretinha-se n'essa occa- sião a fallar não sei com quem.
— Não ha camarote, disse-lhe eu. Se as luzes do lustre o encommodam. o me- lhor é ir-se embora.
— E o que eu vou fazer, disse elle. Isto não tem graça, de camarote ; eu vim cá porque fulana — o nome da velha — tinha esse camarote e não querendo vir ao theatro por estar constipada mandou-o lá para casa. Então adeus, Machadinho, e obrigado . . .
Não me atrevi a dizer-lhe : -;-Não ha de quê.
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Tanto havia de quê, que o próprio António da Cunka vindo a saber, não sei como, que eu havia evitado uma in- discrição que poderia ser fatal, disse a Lopes de Mendonça, com quem eu me dava muito, que me apresentasse e tive- mos depois excellentes relações.
O mundo exterior era tudo para Sotto Maior. Pela pratica da vida, e pelo es tudo, eíiegára a estimar acima de tudo, o trabalho, o bom senso, a razão, a fa- mília, todas as cousas úteis e salutares, — mas nunca gostou, creio eu, senão das outras, das que não são tão salutares nem tão úteis, porém são mais brilhan- tes. Gomquanto educado grandemente, e luxuosamente, comquanto habituado desde pequeno a quanto ha mais caro, mais luzido, mais rico, e mais elegc^nte,
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havia n'elle urna tendência que eu nunca soube explicar para vaidades ostentosas. Já no seu vestuário elle era, ás vezes, um elegante suspeitoso: de gustibus não est disputandiim, mas sempre ha o di- reito, senão de questionar, pelo menos de observar : a abundância e variedade de cores com que elle matisava o seu ves- tuário ; o prazer que elle tinha em an- nunciar o fausto que o distinguia, e o cuidado permanente de pôr bem em evi- dencia as raridades da sua guarda-roupa, tinham de vez em quando seu que de ostentoso, e pode e deve dizer-se isto com tanto mais desafogo que, todos sabem que era um original. Resgatava porém, isso tudo, e fazia-o perdoar pela moci- dade de um espirito gracioso e pelo vigor de uma argumentação sempre prompta
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e hábil. Dominava pela palavra, não só nas camarás, mas pela rua, nas casas no theatro. As pala\Tas teem importân- cia em toda a parte, mas principalmente n'este povo impressionavel e leviano, que tantas vezes até em coisas serias para negocio se contenta com palavras e se dá por bem pago. Com palavras se emba- lam os lisboetas, e se caçoa com elles ; é fácil exploral-os escolhcndo-as bonitas € brilhantes; assustal-os evocando ter- mos, que são como phantasmas:
Decimas.
Reacção.
Deficit.
Repubhca.
Bancarrota.
Ibéria.
Direitos.
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Liberdade.
Patriotismo.
E outros roncos de parolagem !
Depois de haver assustado o parla- mento, sem se lhe importar atirava certo com tanto que atirasse forte e que fe- risse fogo, cortou as azas do anjo e não quiz saber se a humanidade é tâo feia como a pintam, tratou antes de lhe met- ter medo para a deter em seus Ímpetos e de exageral-a para a corrigir: isso fez nas cartas de Gracco a Tullia, e em difterentes escriptos, nomeadamente no Fr. Paulo ou doze mistérios, de que apenas escreveu os primeiros, talvez por ver que a baixesa é campo vasto, e que tanto faz na corte, como nos cantos das ruas, nas assembléas brilhantes ou nos coiós escuros, as plantas luxuriantes do
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vicio, dahypocresia. da avidez, da lisonja, da contradicção, da mentira, da tolice na ambição e da chatesa na vontade, ger- minam por ahi em tal abundância e em tal fartura, que doze mistérios era uma bagatela para tão momentoso e tão ren- doso assumpto!
Foi essa a hora em que a sociedade, o que se chama sociedade — isto é, a mais pequenina porção d'ella, isso a que cha- mam hoje hygh-life, pareceu enfadal-o: desdenhou o grande aparato da aristo- cracia, aparato que principiava a achar-se em mau estado como os adereces das magicas cançadas ou as estropiadas vis- tas do theatro de S. Carlos, de que a gente não pode deixar de rir quando a rubrica marca no folheto da opera — salão ex- pkndido c magnifico . . . Borbuleteou, em
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folhetins do Estandarte, divagando a res- peito de bailes, de mulheres, de amores, fazendo o retrato e a critica de uma ou outra, brincando, devaneiando, sorrindo, e, che lo sá? — vingando. Tinham por titulo esses folhetins. Esta, essa, aquella, e aqueFoiítra e eram de um fulgor de imaginação que fazia com que aqueFou- tra tivesse ciúmes d'aquella, d'essa, e d'esta.
As suas maiores excentricidades fo- ram exactamente o segredo da nomeada que elle alcançou. De uma occasião es- tava jogando o wist: caiu um pinto a um dos parceiros, homem extremamente rico : o sujeito tirou o candieiro de ci- ma da mesa, e poz-se a procurar o seu pinto.
— Que faz, meucharo '? perguntou-lhe
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António da Cunha. Quer deixar-nos ás escuras?!
— Gahiu-mc um pinto! respondeu o outro.
— Ah! E escusado tirar-nos a luz; eu o alumio.
E accendendo uma nota de quatro moedas fez com ella um archotinho para o ajudar a procurar o pinto . . .
— Veja se o acha! disse.
N'um bello dia, para não augmentar a conta no Keil, entendeu que seria bom regular a sua vida, e fazer aos credores uma pequena amabihdade — pagar-lhes ; isso fez-se e foi-se embora para Dina- marca como nosso ministro: pagar-lhes e ficar, seria amabilidade grande de mais, — seria fazer conta nova.
Era homem de bons dotes, de um gosto
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fino para algumas coisas, e sabendo ap- plicar as suas raras faculdades a concep- ções que apresentavam sempre um ca- racter de orignalidade. Tinha muitas vezes a maneira do cavalheirismo antigo e he- róico. Não deve esquecer o seu nome : como homem de talento não lhe ficou que desejar, brilhou no parlamento pela viva- cidade, explendor, e ousadia dos seus discursos, brilhou na moda como o pri- meiro janota do seu tempo, — no Passeio publico o vi eu de uma vez com uma capa de casemira branca — , brilhou na im- prensa como o único folhetinista que pôde conseguir esse titulo no tempo de Lopes de Mendonça, e foi ainda brilhar na di- plomacia, mercê do alcance das suas fa- culdades e dos recursos da sua feição elegante. Se a gloria é alguma coisa.
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podem os mais illustres do nosso tempo invejar-lhe a sorte. Por muitos annos, quando elle estava ainda em Lisboa, se ouviu dizer de vez em quando :
— O António da Cunha é velho, ulio nos iUudâmos. Já no anno de . . .
O seu elegante bigode branco conti- nuava a ser tão moço como os rapases d'esse tempo, bem mais moço que os ra- pases d'agora. Esse bigode legendário era, como por graciosa malicia, mais alve- jante que nenhum outro, mercê de um dos seus segredos de garridice : lavava-o todos os dias com sumo de limão, para o tornar de uma alvura nitida e magni- fica.
Davam os antigos uma foice ao tempo e estavam longe por certo de cuidar, ape- sar da allegoria, quanto esse ceifeiro cruel
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havia de devastar a Lisboa de hontem, fazendo desapparecer em poucos annos, e como que de repente, quantos brilha- ram n'ella na única quadra elegante que ella teve . . .
Uma foice, não!
Uma foice não poderia com tanto. Me- lhor graça teve Ovidio, em dar ao velho dentes e um appetite enorme. Tempus edax rerum. Na monotonia portugueza, no delirio da vida de Paris, nas brumas do norte, nos frios da Rússia, António da Cunha Sotto Maior tem conseguido até hoje rir-se dos annos ! . . .
Falla-se agora ^puito em typos: — Que typo! — É um typo! — Tu és typo! — Não se fallava d'isso então, e era en- tão que elles existiam. De mais a mais n'essa quadra havia, por assim dizer,
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em Lisboa, uma aula de alegria : eram as peças do Gymnasio. O francez Emile Doux ensaiava n'esse theatrirho as co- medias mais engraçadas do ^epertorio de França, que parecia inexgotavel de ratices e jovialidades, a Porta da ma, o Morgado da Ventosa, as Duas Ben- gallas, o Ensaio da Norma, o Doutor Gramma, e as galantes composições de Scribe, Beijo ao portador, A recolhida, o Coronel, sem fallarmos na farça im- mortaldo Taborda, a Velhice Namorada, em que este copiara, um celebre fiel de feitos, chamado Paixão, que era muito conhecido nâo só nos cartórios, mas em todas as lojas de Lisboa por contende- rem com elle os caixeiros.
Esse Paixão, foi a primeira victima da troça popular, não tão amargurado
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assim mesmo pela fúria cassoista da garo- tada das ruas como o José das caixinhas; o Francisquinho; as duas irmãs O mana acerta o passo, pobres velhas a quem fi- zeram inclemências só pelo crime de ellas dizerem isso uma á outra quando iam passeiando ; o boticário da rua do Ouro Roberto pim pim. que pagou caro o ha- ver usado d'esta expressão pitíoresca para indicar a ária do baixo no Roberto do diabo: e, mais que todos, o pallido e phantastico figurão que Lisboa conheceu pelo nome de Escalado.
O Escalado era um pobre homem, que deixara crescer o cabello, as unhas^ e a sugidão mais do que é permittido. Usava os suspensórios por cima da jaqueta: quinse anneis : chapéu esboracado, posto um pouco á banda ; botías melancholi-
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camente estropiadas. Ar de philosopho, e de louco: certa elegância burlescamente lúgubre: a miséria da scrte e da vida, passeando pelo seu pé, como uma theo- ria extravagante e stoica, ai^ sol das Por- tas de Santo Antão!
Ha poucas alegrias n'este mundo que nâo custem lagrimas a alguém. E feita assim, a humanidade. No que uns achara occasião de se divertirem, teem outros razões para chorarem. O rapazio era fe- liz correndo atraz d'esse pobre louco; não havia garoto fino ou grosso, dos que iam ao collegio ou dos que não aprendiam a ler, (lue não aproveitasse o ensejo de implicar com o Escalado, se o acaso lhes sorria ao ponto de o en- contrarem no seu caminho. A infância é cruel, e o excêntrico personagem des-
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afiava a curiosidade; tinha a excentri- cidade cavalheiresca, andava em passo demorado e garboso: dir-se-hia a cari- catura de um deus do hellenismo. Ham entretanto, algumas vezes, o que quer que fosse sublime n'aquelle desgraçado. Diziam-se diíferentes coisas a seu res- peito ; que era de boa família, que fora militar, que enlouquecera por amores. Vá lá saber ! O nada da sua existência era a única coisa fácil de averiguar. Es- tava incapaz de sentir. Tudo o aíTastava do mundo; ninguém na vida tinha ter- nura para elle ; dizia-se também, era uma das legendas, que elle expiava não sei que praga que haviam rogado a al- guém da sua familia. Historias! A fata- hdade antiga não tinha já n'esse tempo nada que ver com as Portas de Santo
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Antão, mas as idéas que grassavam n'essa epocha a respeito da justiça ainda tinham sua relação com as que faziam, outr'ora, expiar por um innocente o crime de um culpado. InspiraçStls da Biblia que poderiam levar-nos longe ; hoje é-se me- nos sonhador; o cordeiro do sacrifício de Abraham era cordeiro, não era ho- mem ; mal iria aos ministros, que vêem depois de outros, se tivessem de pagar o que elles deixam por solver: quanto mais o pobre Escalado pagar o que não fez! Era louco, e pobre; males vergo- nhosos: e estava em terra onde nunca houve policia, por isso os gaiatos, como bons portuguezes, o apedrejavam casti- gando-o de ser pobre e louco!
A sociedade media tinha o seu excên- trico; chamava-se o Morgado das cebollas.
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Era o morgado um bello rapagão, bem parecido, de presença esbelta, vestindo á moda, e deitando o pé para fora. Pas- sava por ser bom moço, e ter pilhéria. Dizia coisas chistosas, que davam no goto ás bellas, por certa originalidade, n'este género :
— Uma senhora, que se prese,' falta aos deveres da boa sociedade sempre que deixar as visitas fazerem escarneo das pessoas que vâo a sua casa, muito mais quando essas pessoas voltarem cos- tas e se retirarem. Ella mesma é que deve fazer isso, a ella é que isso compete !
As meninas riam.
— A civilidade étudo, minhas senho- ras! accrescentava elle, preparando já novo gracejo. Não ha nada que chegue á civihdade! Ahi está também que, quando
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uma visita se levante para se ir embora, nunca as senhoras lhe devem puchar pela sobrecasaca, para a fazerem sentar outra vez, ao ponto de a rasgarem. Basta dizer-lhe com um arsinho de saudade : ' — «Então, já!» E quando elle for na escada, depois de se fechar a porta, é que se deve usar a exclamação usada em taes casos — ^Oh! que massador!
E outia vez as meninas riam, riam. . .
Era preciso vel-o n"um celebre Circo da rua da Procissão, aos domingos de tarde, de pé, á entrada, namorando as formosas que iam para a galeria, já jan- tadinhas, de palito na bocca, e toilettes que não tinham nada que ver com o fi- gurino da ultima moda.
A deusas da companhia, que attraiam áquelle pequenino circo todos os ama-
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dores, pela sua elegância e pela per- feição do seu trabalho, eram mulheres bonitas, coisa que já não se usa nos divertimentos. Os grandes janotas do tempo aífluiam aJi para as ver. Reinava uma suave admiração da parte do pu- blico para os artistas, e, por ser grande o calor n'aquelle divertimento, jcá porque o circo só trabalhava de verão, já por- que o verão era ardentíssimo, os elegan- tes de vez em quando mandavam buscar refrescos, e enviavam-os lá para dentro por um moço qualquer, que trepava gra- vemente o estrado e ali mesmo lh'os offerecia á vista do publico, dando occa- sião a que ellas os bebessem, trocando ao mesmo tempo amáveis sorrisos com os seus adoradores como se lhes disses- sem:
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— A sua saúde!
De uma occasião estava uma a beber um cabaz, bebida ie que se perdeu a moda, e que constav.i de caffé e licores, e bebia isso em plena pantomima . . .
N'isto ouve-se uma voz no fim da pla- téa:
— Nâo bebas mais ! Olha que te pode fazer mal ! . . .
Era a mãe da diva, que lhe atirara com aquelle conselho hygienico, do lo- gar onde estava saboreando, ella própria, uma mistura.
Quando no fim da funcção disper- sava a sociedade, aquellas ruas estreitas regorgitavam de frequentadores do Circo; iam uns cantando, para celebrarem a victoria d'aquella tarde e noite, outros cantavam também para esquecerem o
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cheque amoroso que haviam levado; era cantoria e fallacia por todos os lados; as ondas movediças d'aquelle pequeno mar humano iam rolando para a Praça das Flores ; depois, a pouco e pouco as vozes enrouqueciam, apagavam-se as lu- zes do Circo da rua da Procissão, fe- chava um botequim que havia alli perto, armado para o momento, ia cada um para sua casa, e no silencio da noite não se ouvia senão os gemidos queixosos dos músicos,, esfalfados de haverem tocado desde as duas horas até ás nove, e uma voz de homem que fallava da rua para a janella de uma casa ao lado do Circo ou fronteira ao Circo... Era o Morgado das cebolas, que havia arranjado namoro aUi, como em toda a parte, e que estava dizendo á formosa:
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— Tive excellente idéa em vir hoje a este divertimento! Ganhei o prazer de conhecer v. ex.^ c.ija belleza rara . . .
Doesse Circo dá rua da Procissão, passaram os artista^' para o Circo do Gvmnasio. o famoso barracão onde a pantomima e a gymnastica floresceram durante três mezes: do barracão, nas- ceu o theatro, o antigo theatrinho que foi tão alegre pelo seu repertório como pela vida que levavam os seus artistas.
Amigos todos e dando-se bem uns com os outros, o que é a mais curiosa raridade de quantas tem succedido em theatro, trabalhava-se á hora própria, e o resto do tempo era para a alegria.
Cada qual se divertia alli a seu sa- bor.
Romão era homem dado a amores e
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a aventuras; tinha uma bagagem per- manente de raminhos de flores, c de cartas maviosas : nunca passou tantos bi- lhetes de beneficio, como bilhetes de amores. A legenda apontava uma lista abundante de favoritas doeste imperador do ensaio. A verdade é que elle ensinava as actrizes com immenso gosto, e que esse gosto augmentava em ellas também gostando d'elle. Fez prodígios. Não ha- via discípula formosa, que a varinha ma- gica d'este ensaiador, que parecia querer perpetuar o capricho gallante dos faunos, não transformasse, a poder de dedicação, em artista distincta. Depois, como sem- pre foi homem intelligente, sinceramente alTeiçoado ao theatro, tendo o zelo e o fanatismo da arte, ainda que acabasse o amante, continuava o ensaiador, eia-as
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auxiliando sempre com as suas lições, elle que por um momento estivera a ponto de as desvairar com o ensinar-lhes o jogo das paixões nas praticas da vida, mais arriscadas ainda que as do palco I
O gordo Pereira !
Homem por excellencia !
Bom egualmente á mesa, ao cavaco, e no tablado.
Para elle a difficuldade de um papel consistia simplesmente em o decorar. Uma vez aprendido de còr o papel, di- zia-o para alli de corrida como um rapaz a papaguear a lição, e suppria pela sua graça natural o que devia ás vezes á peça e ao personagem. Era jovial con- viva, e bebeclor audaz. Tinha a casa cheia de livros: muitos em lingua que nem elle sabia. Levava-o para as letlras
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e para o talento, uma simpathia irresis- tível: depois do talento e das lettras, essa mesma simpathia levava-o para o vinho. De uma vez, por distracção e curiosidade, namorou ; elle mesmo con- fessava que não havia gostado e que se deixara d'isso sem mesmo haver perce- bido o que seria ser amado e amar. Era um philosopho.
Moniz, tétrico, patibular , lugubremente triste, de cara, de modo, de expressão e de sistema, na vida, alegrava-se duas horas todas as noites — emquanto estava representando, e que vivia da alegria que inspirava. Precisava fazer rir todo o pubhco, para estar contente elle. Ao descer do panno, os espectadores reti- ravam-se, e Moniz ficava sem a sua ale- gria: levavam-Hra elles.
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Marques, era um sábio, um cavalhei- ro, um piteireiro, e um sachristão. Tudo isto. Sabia latim, dizia a propósito de qualquer coisa uma máxima valiosa, e bebia-lhe em cima meio quartilho. Fez a fortuna e a fama de uma tasca, que por muitos annos existiu ao lado do Gvmnasio; foi o inventor do Barra- cão,
Braz Martins estudava, trabalhava, e massava. Em apanhando léo impingia a sua historia toda : fura rico, elegante, jo- ven, e sempre fanhoso: de todas estas prendas só lhe ficara a ultima. O reper- tório original do theatro portuguez foi por uns tempos seu. Para o theatro de D. Maria ii escrevia a Mendiga: para o Gvmnasio:
Fernando ou o juramento, O chinello
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da cantora, Vou para a Califórnia, A garrafa monstro, Santo António.
Era homem de habilidade, mas in- feliz. Temperamento oscilante ; caracter fraco: dominado pelas mulheres. Boa naturesa, no fundo d'isso, e sempre ge- neroso nos assomos de audácia que eram suffocados na paixão amorosa. Esmore- cia no IrabalhO; por causa dos amores; nem estudava, nem progredia ; pelo con- trario, como succede aos fracos, foi a peior como escriptor e como artista, á medida que os casos do coração o sal- tearam. Os grandes talentos medram e avultam quando amam : os pequenos en- tesam e murcham. E a differença.
Diga-se também n'este ponto a ver- dade toda, e é que a vida de thealro
n'esse tempo tinha seducções que não 6
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tornou a ter; o publico adorava os artis- tas: as mulheres davam o cavaco por elles. Os theatros particulares prepara- vam habilmente esses eíTeitos amorosos; o maior numero de actores começaram n'esses tablados amáveis, nunca perigo- sos, de theatrinlios de convite. Ali se davam o gosto de representar toda a qua- lidade de papeis a seu sabor. Pedro o Grande ou a escrava de Mariemburgo, A nódoa de sangue. . . Braz Martins ganhara fama n'esses recreios tomados sempre em conta de gloria, e dispendêra com taes divertimentos o melhor de uma herança que tivera. Ao entrar para o Gymnasio, protegido e aconselhado por um cavalheiro que lhe foi dedicado sempre, o tabellião Cardoso, mais co- nhecido n'aquella epocha por cunhado
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do Visconde da Luz, homem engraça- díssimo, extremamente afeiçoado ao thea- tro, e auctor de uma farcita que fez epocha, Um Bernardo C'>mo ha muitos; ao entrar para o Gymnasio, Braz Mar- tins era annunciado como uma ressur- reição do Talma. Durante annos esse homem teve a arte de prender a atten- ção do pubUco ás suas peças e ao seu nome, e alcançou o suífragio dos httera- tos pela prenda de recitar poesias no in- tervallo das comedias.
Foi, mercê d*essa novidade, a qua- dra do Ave César, do Abdel-Kader, o Veterano, a Minha Pátria, a Lua de Londres, o Camões . . .
Estabeleceu-se a moda.
A sr.^ Emilia das Neves entendeu logo que devia também molhar a sua
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sopa no mel, ii'aquelle puro Hymeto da poesia lyrica, e começou a recitar a Cei- feira, o Se coras mo conto, o Sonho da actriz, entre applausos.
O actor Rosa não poude também sus- ter-se, e foi-se ao Veterano apesar do Braz Martins.
Os litteratos tinham um trabalho enor- me para contentar estes três interpretes, que, não contentes de recitarem durante mezes a fio quantas poesias appareciam, algumas nem sempre muito ricas de idéas nem de rimas, — mas emfim, lá isso, cos- tuma dizer-se que não é a riqueza que dá a felicidade! — os obrigavam a julga- mentos imparciaes e sinceros.
Rosa apresentava razões para eviden- ciar que só elle tinha a grande arte da recitação lyrica; a sr.^ Emilia das Neves
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valia-se da sua voz lindíssima para dar ao verso uma musica que não deixava de ter sua graça; e o Braz Martins ia fungando poesia e mais poesia, tirando recursos, até então não conhecidos, da voz nasal.
Tudo isto fazia com que Braz Mar- tins disfructasse uma consideração litte- raria, que promovia o assombro dos seus companheiros, e o auctorisava a descar- regar massadas homicidas n'aquelles pobres homens, que viam n'elle um Moliére, com a mesma facilidade e promptiJão com que annos depois, sem motivo para uma coisa nem para a ou- tra, principiaram a ver n'elle unica- mente um actor impossível e um auctor inaceitável. Para este ultimo conceito ha- via concorrido em parte o nenhum sue-
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cesso (las suas ultimas peças, e a queda desastrada de uma celebre Ilha gataria em que o panno teve de descer indo a peça em meio, para maior conveniência do theatro e vantagem do auditório.
Não estou certo se. emquanto durou a sua hora de celebridade e de voga, lhe enfeitaram a primeira casa do lado esquerdo da casaca com um habitosito; tenho idéa qiie se pensou n'isso, mas não poderia assegurar se o conseguiram ou não. A coisa apresentava difficulda- des. As condecorações no palco eram d'antes assumpto de grandes discussões no nosso paiz. Por occasião de ser con- decorado o actor Epiphanio, abalou-se o paiz. A geração nova approvou o fa- cto; os velhos sobresaltaram-se. Houve m.urmurio grande, ficou sempre memo-
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avel este caso na família portugueza. Por muito tempo, actor que levasse pal- mas esperava no dia seguinte que o mi- nistro lhe puzesse uma fitinha na casaca; os ministros deixaram de applaudir, pa- ra nâo se comprometeren) a dar prenda. Tinham os artistas em recitas de noite de gala distracções imperdoáveis na de- clamação dos seus papeis, e arregala- vam os olhos a cada instante para as commendas e hábitos que ornavam o peito de alguns espectadores. Os gover- nos fingiam não perceber, e tudo conti- nuou no palco em grande calmaria de condecorações.
Vinte annos depois pensou-se que era tempo de arriscar outro habitosito, e acu- diu logo muito naturalmente a casaca — ou, quero dizer, o talento de Taborda.
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Eiitrelanto.. como um presente d'aquel- les não podia levar-se a efteito de um dia para o outro, passou-se um pouco de tempo a scismar.
— Pômos-llie a fila?
— Não lhe pomos a fita?
Grave problema, que rasgou desde logo o véo das ambições secretas, dissi- pou o nevoeiro de desejos que não se declaram, e descobriu radiante no ho- risonte a fita de S. Thiago, que estava fresquinha.
— Pomos-lhe a fita ? tornaram elles a dizer.
— Não lhe pomos a fita? Perigosíssimo ponto de interrogação
que suspendeu de repente a gravitação silenciosa de alguns aspirantes ordiná- rios á roda do seu astro central, e cha-
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mou a attenção da imprensa e do pu- blico.
Appareceu a noticia nos jornaes...
O ecco repetiu...
Foi uma alegria !
Depois de tantas questões que por ahi suscitara, S. Thiago vinha em fim dar gosto á gente.
Estimou-se nas salas, saudou-o a im- prensa, o theatro sentiu-se glorioso pela segunda vez, nos serões foi esse o as- sumpto das palestras, e até nos botequins ruidosos calou-se o cavaco soporifero para deixar fallar a voz do triumpho.
E de então para cá, ora para o actor Rosa, ora para o actor Tasso, ora para o actor Santos, ora para o grande Rossi, ora para Salvini, ora para o Isidoro, ainda de vez em quando se pensava:
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— Eu SOU O distinctivo do mérito. Se o ião engendro, pelo menos apregôo-o; s não ando pendurado em todas as go- 1; illustres, estimo ao menos como ce- lores todos os peitos que enfeito, e jigo que me pagam cortezia com cor- t< ia. Gomo hei de ver-me no tablado, eibrulhado nos ouropéis agora do ri- ( ulo, logo do vicio, e d'alli a nada do c me?! Pois hei de trepar-me na niza ( Manuel Mendes, e receber trambu- lões de Rebollo, de Michaella e do ca- ftão de milícias? Hei de ser o traidor, cpapa-ratos, o paspalhão, e o malvado? hi de ministrar veneno, cravar punhaes, lubar creanças, e sair á estrada? E se í peça for má, se o papel for paleado, ^ a platéa enraivecida atirar patacos ao ítor, hei de ser eu que os receba? Á
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— Damos-lhe a fita?
— Não lhe damos a fita?
Porque, dizia-se, se nâo lhe damos a fita, os actores poderão gritar que con- tmuam os preconceitos, a injustiça, o martyrio ; poderão allegar a importância social da sua arte, as difficuldades que a cercam, o talento de que teem dado provas, o incessante caminhar para o bem, a pureza progressiva dos seus cos- tumes, a estima m.oderna em que são tidos.
Se lhe damos a fita. o que dirá S. Thiagc?
O que dirá a arte dramática?
O que dirá a lógica?
Pensemos um momento como se fos- semos nós a loírica. a arte dramática, e S. Thiaao:
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— Eu SOU O distinctivo do mérito. Se o não engendro, pelo menos apregôo-o; se nâo ando pendurado em todas as go- las illustres, estimo ao menos como ce- lebres todos os peitos que enfeito, e julgo que me pagam cortezia com cor- tezia. Gomo hei de ver-me no tablado, embrulhado nos ouropéis agora do ri- diculo, logo do vicio, e d'alli a nada do crime?! Pois hei de trepar-me na niza de Manuel Mendes, e receber trambu- Ihões de ReboUo, de Michaella e do ca- pitão de milicias? Hei de ser o traidor, o papa-ratos, o paspalhâo, e o malvado? Hei de ministrar veneno, cravar punhaes, roubar creanças, e sair á estrada? E se a peça fôr má, se o papel fôr pateado, se a plaléa enraivecida atirar patacos ao actor, hei de ser eu que os receba? Á
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casaca dos pintores, dos esculptores, dos homens de letras, posso eii muito bem pendurar-me; se qualquer d'elles tiver um revez, não me succederá mal algum — porque não appareço. Mas com os actores não é assim, porque os actores pagam com a sua pessoa, pagam de corpo presente. Embora me deixem no cama- rim, senle-se que vou com elles para o tablado. Yisivel ou invisivel, brilho aos olhos de toda a gente. Gomo heide pre- servar-me eu das humilhações a que el- les próprios se sujeitam?
Dizia a arte dramática :
— Bom foi que assim como o deram aos trágicos, também o dessem aos jo- cosos ; — aliás, ahi principiavam os acto- res alegres, os que fazem rir, a scismar na fita e a mudar de género, deixando-me
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reduzida aos centros e aos pães nobres. A pateada ó um perigo, é certo, e seria prova de civilisação completa da parte d'este paiz se depois de haver acabado com a pena de morte acabasse também com a pateada; mas — para supprimir também os applausos. Se um cavalheiro, n'uma sala, em vez de discutir as opi- niões d'aquelle com quem converse, lhe exprimir a sua maneira de pensar fer- rando os tacões no sobrado e sapateando rijo, terá de passar por sujeito educado um pouco incorrectamente; — mas se tre- par a uma cadeira e principiar a gritar «bravo! bravo! bis!^ não fará decerto melhor figura. Deixemos, deixemos a pateada; é talvez útil... até para não serem condecorados senão os bons acto- ; res!
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A lógica dizia :
— Dè-se a fita aos actores, podem merecel-a como a outra gente ; mas dê-se também ás outras notabilidades circum- vizinhas. aos dançarinos, aos gymnas- tas, aos Yolteadores do circo, ao homem dos sete instrumentos, ao que apanha primorosamente um toiro, a quantos di- virtam a gente com boa habihdade em- fim.
E isto é.. cuido eu, de tudo o melhor, — comtanto que não haja equivocos, porque na guerra as condecorações são baseadas cm feitos indiscutiveis, cam- panhas, feridas, acções de estrondo, bem comona ordem das funcções publicas — serviços reaes e visiveis ; ao passo que na arte é tudo vago, fugitivo, e a opi- nião de um a tal respeito não concorda
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quasi PiUnca com a do outro. E indis- pensável, por isso, que continue a ha- ver cautela, e a ponderar-se a cada ca- valheiro novo que aponte no horisonte:
— Pômos-lhe a fita?
— Não lhe pomos a fita?
Braz Martins merecia-a deceito tanto como alguns que por ahi a teem ; esta maneira de dizer tem a vantagem de servir para o direito e para o avesso, e o leitor terá a bondade de ageital-a á sua opinião, por forma que conclua que o homem merecia a fita, ou não merecia a fita.
E verdade que os mesmos poetas, cu- jas composições elle decorava e repetia, também não se acharam nunca enfeita- dos d'esse adorno glorioso e decorativo, á excepção do sr. Mendes Leal, que lo-
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grou a escalla chromatica de toda essa
musica.
O que havia de poetas por aquella epocha, é coisa incalculável ; pouco du- raram quasi todos elles: mas. por mais de três ou ([uatro annos, foi um enxame. A mythologia grega dizia que o somno é pae da morte : tanto adormeceram os leitores, que morreram elles próprios, coitados ! ^
Os que resistiram, eram homens a va- ler. O paiz, que lhes apprendera os no- mes, não os esqueceu mais.
Muitos, destinados a outras especiali- dades e consagrando a sua attenção a uma ordem de trabalhos completamente alheios á poesia, deram-se ao verso como quem se põe á moda.
O primeiro poeta que me mostraram,
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nâo sei já em que rua, foi o sr. António de Serpa. Magro, pallido, de cabello cor- redio deitado para traz da orelha, e so- bre-casaca abotoada, admirei n'elle o typo completo, excellente, que a burgue- zia attribue aos poetas: era melancho- lico, entesado, amarelilo . . .
Pareceu-me lúgubre.
Apertou-se-me o coração quando o vi.
— Este é o António de Serpa, hein? perguntei pasmado.
— É.
— Está bom poeta. Deve ser muito infeliz ...
— Infeliz . . . ?
— Sim, muito doente, muito perse- guido pelos homens, muito atribulado, muito afflicto ...
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— Não. É até muito estimado pelos seus talentos.
— Palavra de honra?
— Palavra d"honra. Acaba de publi- car um livro de versos correctissimos. E um poeta da familia dos Déchamps e dos Méry. Tem a corda da tristeza, e a da ironia. Brinca a sua satyra, que é um gosto. Não é triste, não; e apesar de magiinho é de canéllo: ha-de ir longe.
O que é feito do poeta? Ninguém mais soube. Os poetas são creanças perdidas na sociedade moderna : a elle acharam-o e fizeram-o ministro. Adeus pagens, e adeus bandolins !
Diz o provervio que Júpiter quando quer perder as pessoas, endoudece-as primeiro. Quos viút perdere Júpiter prins dementat: a poesia foi em Lisboa o prin-
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cipal instrumento de que Júpiter se ser- viu para dar com a gente em doida; ambos os sexos, e todas as classes, se pozeram de repente n'aquelle regimen exclusivo de versalhada. O destempero, a pieguice, a lamuria, produziram um effeito tão agradável que a chochice ri- mada tomou o logar ao juiso, á arte, e á moral. Rompeu uma multidão de poe- tas a discorrer sem metro nem rithmo, que arrasou o gosto c a rasão com uma exhuberancia tremenda de semsaboria guindada, de sublimidade pascasia. Era o Banana em Pathmos !
Tiveram um instante de moda: nas philarmonicas ; nas casas particulares recitando versos, ao piano, em que se celebrava o siuriso liso; e nas barcas de banhos, para irem gargarejar com
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acompanhamento de exclamações e ex- tasis:
— Temos um bello rio!
— Oh!...
— Um bello rio !
As barcas eram muito concorridas: faltava só uma cousa á felecidade dos donos J'esses estabelecimentos; a não ser isso, a ventura d'elles seria completa: era nâo terem lá emprazadores.
O emprazador, producto incestuoso da vadiagem e do mau olhado, florescia muito entre nós: deleitava-se em não ter que fazer, e entretinha-se em prejudicar. Tomava no bote o lugar que conviesse a algum freguez sério, que ficava no cães á espera, ou saltava para outro bote e ia a outra barca; sentava-se na cadeira destinada a quem estivesse esperando
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banho ; ia pespegar-se no toucador das senhoras, pasmado para quem comia um biscoitinho e bebia um copinho de hc^r depois do banho; afugentava familias pela balda que tinha de se fazer chistoso mofando em voz alta da tlgura de cada qual; e namorava sem incommodo nem despeza, chegando a fazer com que as filhas alheias se dessem por constipadas para a mãe tomar banho sósinha, e fi- carem ellas a vêl-o ; do que resultava. para o estabelecimento, baixa de filhas na venda dos bilhetes !
Na barca dos Tonneis tinham por el- les cordeal antipathia, e tratavam-os com um rigor, que só n"uma imagem poderá dizer-se — como quem trata um cão. Mas, por mais duras (lue fossem as se- veridades, nunca esses petimétres, como
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então se lhes chamava, lho levavam a mal, cada vez pareciam dehciar-se mais com aquella convivência, e logo que rompia a manhã já lhe appareciam — aligeirando a barca da sua presença ape- nas por alguns intervallos, empregados em viajar até ao Terreiro do Paço e do Terreiro do Paço outra vez para lá, ora com os que iam, ora com os que volta- vam, rindo e brincando, como pedia o bom humor.
O encanto das barcas brilhava por episódios diversos ; sahava, por exem- plo, de repente, entrando de um lado, atravessando com rapidez, e saindo pelo outro, um banhista nómado, ambulante, de coecas de malha, que andava de bote visitando as barcas n'aquella toilette, — a bem dizer, casaca de visita para o
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Tejo de crystal ; quando não andava na- dando! e que, saindo das ondas como um câo d'agua, lhe dava a vineta de en- trar nas barcas, movido do desejo de fazer de aguaceiro e encharcar as pes- soas por quem se roçava.
A Diligencia pela respeitabilidade de principios clássicos, esqoivava-se um pouco a essas correrias gallantes, mercê de ser a barca das velhas que iam ás duas e ás três, de mãos dadas, outras vezes com um idiota no meio, dando- Ihe a mão, uma de cada lado, pé cá, pé lá, n'uma contradança, que levava três horas primeiro que embarcassem!
Tenazmente disputaram essas duas com a Flor do Tejo o império do mar, co- mo outr'ora Tyro, Garthago eRoma, não para fazer vogar os seus triremos victo-
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riosos, mas para darem quarto e lençol por sete vinténs em honra de Amphitrite! A dos Tonneis deu-se por vencida. Já estava cançada d^aquella lida, de vi- gilância, seriedade, doçura, engenho, rispidez, bonito modo: no bonito modo^ iam as conveniências sociaes; cumpri- mentar para um lado. e para o outro, prestar a maior attenção a qualquer des- abafo contra o lençol, que estivesse um pouco húmido:
— E do tempo, minha senhora, é do tempo!
— Estou desconfiada que m'o troca- ram!
— Pode V. ex.^ estar certa que . . .
— Passou de linho a algodão, mu- dou-se de novo em velho, tinha uma farrusca . . . etc.
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E depois, saber o nome de toda a gente (ha pessoas que gostam muito de que lhes saibam o nome!)
— Muito bom dia, sr. João Gancio!
— Senhora D. Leocadia, minha se- nhora !
E o que vaha era n*esse tempo ap- parecerem poucos titulos, e não ser pre- ciso carregar a memoria com barões. viscondes e condes.
Em tudo ha especialistas. Existem col- lecionadores que não querem saber senão de certos e determinados objectos; uns procuram louças da China, este quer contadores antigos, o outro moedas de outras eras, este medalhas, aquelle cai- xas de rapé; os bibliomaniacos não dão estimação senão a certa qualidade de h- yi*os, ha um que tem os folhetos todos
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de S. Carlos, outro a collecçâo de avi- sos de touros que espalha o homem do bando: mas começaram a apparecer ii'esse tempo alguns, que, por não serem numismataS; nem amadores de cerâmica nem bibliopliilos, gostavam de espelhos e descalçadores dos quartos das bar- cas.. . Que variedade nos collecionado- res! A barca dos Tonneis não gostou d'essa civilisação, e também se affligiu com a confusão que reinava no corre- dor da saida, e que era vivo prenuncio do progresso! Esse corredor, era um perigo para os costumes: para aU se passar, era-se pisado; todas as gordas iam para o corredor : o motivo não se sabia, mas o certo era que todas âs gor- das iam, com meninos, dois ou três me- ninos, que punham á frente: — Chega-te
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para diante, menino! — E ahi ia um su- jeito passar por cima do pequeno, e por baixo d'ella, sem pisar ninguém, e agora se lhe prendia a aba do casaco, e lá lhe ficava a manga, e ahi lhe cabia o cha- péu, e tropeção de um lado, encontrão do outro, três pés em cima de um d'elle, e tudo isto conforme manda a cortesia, indo ainda em cima a pedir perdoes :
— Perdão minha senhora !
— Perdão, meu senhor 1
Depois, mal chegava o bote, ia tudo em onda; os que estavam adiante caiam sobre os que desembarcavam, os que de- sembarcavam caiam outra vez no bote ; a criada, que nesse tempo ia para to- das as funcções com os amos, deixava-se ficar para traz, na intenção ladina de se ver livre d'elles por um pedaço :
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— O Maria, 6 Romana!
— Estou aqui, minha senhora, mas já não caibo !
— Avia-te, dá cá a mão!
— Já não cabe ! dizia o barqueiro, que é o que ella queria ouvir. Está a conta.
E lá se iam os patrões, de bole, e ella na barca, livre por dez minutos, in- dependente, podendo fallar com quem quizesse . . .
— Já não caibo ! . . .
Ah ! Uma barca austera não poderia ver isto com bons olhos ; foi do que mor- reu a dos Tonneis: o progresso ajudou-a.
O progresso !
Era a palavra do dia ! Era o papão !...
Muita gente se assustou com isso. Depois do terror, veio o ódio ; chegou a
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odiar-se essa palavra e essa idéa: pro- fjresso / . . .
Todas as epochas em Portugal toem tido alguma raivinha de predilecção, ar- gumento sem replica, ultima ratio, con- tra a qual não haja que dizer, por ser ao mesmo tempo absurda e victoriosa; tem sido sempre assim na politica, na arte e nas letras. Por um tempo a in- juria suprema, com que os cortezãos do poder fechavam a boca a todas as objec- ções, era ser republicano; depois foi acoimado de retrogado, de repente, todo o pobre homem que continuou a ser como era, a viver como vivia . . . N'um bello dia, a mocidade partiu com a ma- nia dominante da economia politica, e foi dar comsigo na politica sem econo- mia; chamou-se a isso o progresso: d'ali
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a pouco, como se um furacão nos ti- vesse voltado, já nâo embirrávamos se- não com os progressistas; comedias, jornaes, e a rua, tudo mettia o progresso á bulha; dizia-se de qualquer cousa ri- dicula. prejudicial, ou fútil: — «E o pro- gresso!*
Foi-se embirrando sucessivamente com uns poucos de grupos : um homem andava pelo seu pé, ou parava, ou punha o chapéu, ou tirava-o, ou respirava, ou tossia, era cabralista; o homem -depois tossia, ou respirava, ou punha o cha- pen, ou tirava-o, ou parava, ou ia an- dando, er3i pé fresco, era lazarista, ou, peior de que tudo, era litterato!
Poucos tiveram a coragem de não quererem ser poetas, n'esse tempo. Dois ou três resistiram. Rebello da Silva en-
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tre elles. Um homem raro. O mesmo talento até ao fim da vida. A mesma fa- cilidade de fallar e de escrever. Rápido e exaltado. Escriptor, professor, orador, e animando-se por igual no parlamento, no curso superior de lettras, e deante da mesa da escripta. Improvisador sem- pre— o seu grande segredo; porque, bem sabem, que, até nas paginas de um livro de larga meditação e por mais abafado que alli pareça estar, nunca o fogo sagrado do improviso, nos previ- legiados talentos que dispõem d' esse dote, deixa de romper em clarões vivifi- cantes.
Quando elle se estreou, a impressão romântica dominava o espirito da epo- cha. Dados os primeiros passos e ganhos os primeiros triumphos, elle conseguiu
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logo depois que um romance portuguez disputasse era popularidade a estimação só concedida n'esse tempo ás attrahen- tes novellas históricas de Alexandre Du- mas.
Com que anciedade se procuravam na Revista Universal Lisbonense os capí- tulos soltos da Mocidade de D. João V, que pela frescura e graça do estylo não só mereceu a admiração da gente que faz a barba, mas a sympathia espontâ- nea e enthusiastica das doces creaturas que a phraseologia de então ainda cha- mava galantemente a mais hella porção da humanidade.
Mas, o que foi sobretudo raro, afluên- cia, o aroma de poesia, todos os dotes emfim que, n'aquelle afamado romance, Jhe alcançaram tão justa voga, encon-
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travam-se ainda e sempre com a mesma força, a mesma inspiração, a mesma descripção opulenta e florida nos seus últimos livros, que nunca aliás ganha- ram celebridade.
Quando elle appareceu, a moda era querer ser cada contista — um pintor do coração humano. Sempre entre nós se tem gostado d'esta phrase, e por isso a deixo ir tal qual, comquanto a mim se me figure risivel. E um infeliz, esse po- bre coração humano, de quem toda a gente tem abusado escandalosamente na imprensa. O coração humano de quem? o coração humano de que? Creio que também tenho coração, eu; e que o lei- tor também tem coração; e o meu vizi- nho, outro; e outro o seu vizinho; e que toda a gente tem coração mais ou me-
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nos, mas sem coração humano: aliás, quantos romances se incumbiram de descrever o dito coração, teriam todos de seguir o mesmo molde!
O romance é o homem, — e ahi está talvez a explicação de haver tantos ro- mances maus, e serem tão raros os que se citam por excellentes.
Ha romancistas de analyse, romancis- tas de imaginação, e até romancistas de acontecimento, de caso, de drama: não escrevem, contam, ajudam a matar o tempo, entretém; ha também romancis- tas Íntimos, como foi por essa epocha, Barbosa e Silva, no Viver e soffrer; e romancistas históricos, que foi ao que Rebello da Silva se propoz, por enten- der decerto que chegara a hora de reco- lher as Iradiccões.
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EUe gostava do romance de imagina- ção, e nunca abandonou essas predilec- ções no romance histórico. O seu gosto era vir como um amigo intimo visitar o leitor sem se embuçar n''um capote e sem se embrulhar n'uma nuvem; vir conversar, mudando de tom, risonho, cáustico, sensivel: fazer o romance de sentimento, que de certa maneira é já historia, — a historia de uma existência, de uma paixão : — mas a vida portu- gueza principiava a não ter feição pró- pria e sua; começávamos a fazer tudo á moda estrangeira, imitando constan- temente a França no modo de pensar, de fallar, de trajar, de sentir: e elle, por ver que se iam apagando cada vez mais os costumes e esmorecendo o gosto pela pintura d'elles, entendeu que o romance
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histórico era o único romance possível em Portugal, mas realisou-o a seu modo fazendo concessões ás suas tendências de homem de imaginação fugaz, como o foi sempre em tudo, nâo só no romance, mas no jornal, no parlamento, na vida. Primoroso como orador. Gomo con- versador fluentissimo, brilhante, inex- gotavel, mas esquecendo-se um pouco ás vezes e alargando-se em dicursos que nâo eram propriamente o que cons- tituo conversação, superiores a ella tal- vez, mas que, em todo o caso, de al- gum modo a transformavam n'um longo ainda que admirável monologo, que fa- ^ia lembrar o discorrer de Angelo Ma- lipieri com a cómica Tysbe no meio da
rua!
Como artista, e por amor do pitoresco
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era capaz de moer um homem, de o es- trafegar. de o aniquilar, de espalhar ao vento as suas cinzas, e depois caindo em si, serenando da fúria da palavra, cho- rar por elle com sinceridade vehemente dum admirador . . .
Guerreou Rodrigo da Fonseca Maga- lhães no jornal A imprensa atrozmente, horrivelmente; e toda a genle lhe ouviu por muitas vezes exaUar o talento, a graça, o encanto especial d'aquelle espi- rito e d'aquelle temperamento:
— Bom homem ! dizia elle de Rodrigo quando contava o caso e recordava epi- sódios em que pudera avalial-o. Bom! excellente homem! ninguém gosta tanto d'elle como eu!
E, recolhido em si, entregava-se ao poor Jorik ! de Hamlet.
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Teve sempre UQia paixão e sempre se sacrificou a parecer ter outra ; a das leltras era verdadeira. A da politica. . . Em politica era um phantasista ; e cus- tou-lhe essa phantasia bens e saúde. Foram tristes os últimos tempos da sua vida. No jantar do seu ultimo dia de an- nos, sentiu-se como que o frio dos pres- ságios, no sorriso com que elle acolheu a saúde que se lhe fez. Estavam á mesa unicamente a familia, uma filha do sr. Rodrigo Felner, o velho actor Theodo- rico, Jayme Moniz, e eu. Custava-lhe já excessivamente a fallar, e deixava trans- parecer a tristeza, que elle de ordinário disfarçava com tanto cuidado.
Já iam longe os triumphos do Ráusso por Homisio, da Tourada de Salvaterra, e da Mocidade de D. João V. . . E de-
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pois a doença, a solidão que estranham os que saem do poder, as surprezas da astúcia, as da ingratidão . . .
Talento vivaz, talento fluente mais que todos, e mais qne todos lúcido ! Ensaio gigantesco que Deus fez! Foi sempre este o effeito, que este homem de gran- des qualidades produziu a todos que o conheceram. Veiu ao mundo destinado aos triumphos da palavra, da escripta, da politica, do professorado. Como que lhe tiritava o talento n'aquelle corpo frágil, e a chamma sagrada pairava en- tregue aos ventos, sempre gloriosa e es- plendida nas lutas, parecendo defendida pelo 7ioli me tangere dos poetas . . .
Quando a idéa da associação irrompeu em Portugal, os litteralos soffreram um pequeno abalo, porque as attenções des-
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denharam-os durante um tempo e volfa- ram-se exclusivamente para os corajosos iniciadores d'aquelle grande e útil pen- samento.
Os que se riam du progresso, riam-se também da associação. Mas quê! A vi- ctoria parecia decisiva. Era uma febre nervosa, uma preocupação indomável. Associação! Associação! Associação! Foi a idéa ; foi a palavra. Esperava-se tudo d'ella. x\ssociação! Parecia chegada a hora em que o rec:imento mor dos des- herdados poderia sacudir de vez o fardo secular, que lhes tem pesado! Já se dei- tavam contas a que o povo que soffre, que trabalha, que aguenta o peso do dia, o vento, a chuva, o calor, tivesse também o seu quinhão de regalias . . .
Mas o problema era difficil de resolver;
LISBOA DE MONTEM 121
difficil continuou a ser. Agora mesmo que eu estou escrevendo, bem sentado, está um pedreiro, a caiar uma casa, encarapitado no parapeito da janella, segurando-se ninguém sabe como, mal podendo assentar os pés, e exposto ás ventanias; se o pedreiro pozer um pé em falso, se tiver um momento de des- cuido, de esquecimento, de distracção, estará perdido, irá bailar á rua. Porque será elle, e nfio eu?
Porque é lei da natureza a desigual- dade ?
D'aquellas duas arvores que estão acolá, porque motivo é maior a da di- reita do que a da esquerda, mais co- pada, mais alta, mais rica? Qual será o destino que marca áquella roseira finar-se e murchar, emquanto esta d'a-
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qui viceja e triumpha em todo o explen- dor e em todo o desabrochar das flores?
Pode o homem, mais fehz que a ar- vore e a flor, remediar ás vezes por a vontade e pelo trabalho a desigualdade de origem e de meios ; mas é custoso, e da maior parte das vezes não se con- segue; o problema subsistiu, subsiste ainda, doloroso, ralando em meditações os mais pacientes; a associação não ha- veria podido nunca resolvel-a, mas, o que não é pouco, podia, e pode, por vezes attenuar-lhe a aspereza e as tris- tezas.
Appareceu então o jornal de Sousa Brandão e Lopes de Mendonça, Ecco dos Opperarios. Mendonça andava n'uma ale- gria extrema. Com que orgulho elle apre- sentava os seus collaboradores, Chaves,
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e Vieira da Silva! Iam ás tardes ao Pas- seio Publico, ao Martinho, ao Suisso, e Mendonça revia-se n'elles. Vieira da Silva foi-lhe sempre sympathico ; muitos annos depois d'essa epoclia, Mendonça, que se animava e perdia em sonhos côr de rosa, sempre bons e propicios aos seus amigos, sentimento que o distin- guiu em todo o tempo que esteve no gozo e segurança das suas faculdades, e que ainda o acompanhou por entre as primeiras perturbações da loucura, di- zia-me n'uma manhã:
— A minha idéa é fundar uma typo- graphia, pôr á frente d'ella o Vieira da Silva, e fazer-me editor de algumas obras. Isto é principalmente por ter em vista o Vieira, que eu desejo ver coUo- cado por modo que possa viver com de-
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safogo e occupar-se de trabalho de que elle goste e entenda!
N'esse tenopo o edilor em Portugal era como a ave Phenix, de que toda a gente falia e que ninguém viu nunca. Apenas dois homens asseguravam que isso existia, Garrett e Alexandre Hercu- lano; mas. quando se queria verificar, era impossível: dizia-se «ali para o Chiado, á esquina ou cousa assim, de uma travessa perto da egreja dos Mar- tyres, uma loja, uns velhos, muito hon- rados, uns occulos . . . E nada mais, o o muito, o muito, este nome — ^Ber- trands ...» loja escura, casa incerta, tudo vago . . .
Lopes de Mendonça não chegou in- felizmente a realisar nem esse, nem ou- tros dos seus sonhos: mas logrou uma
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alegria, alegria verdadeira para aquelle temperamento nobre e são ; fòi ã de au- xiliar, celebrando-os, quantos em Portu- gal se interessaram de coração n essa épocha pelo espirito e destinos das clas- ses operarias.
A associação em Portugal teve os seus fanáticos, e os seusmartyres, e até, para, não escapar á sorte das grandes reuniões e por obedecer aos preceitos de uma épo- cha em que a habilidade é tudo, os seus hábeis. Essa habilidade ainda assim não foi nunca mais longe do que a grangear a algum, um pouco mais ambicioso, po- der brilhar melhor na associação do que se estivesse sósinho, ficando a parecer-se n'isso com os diamantes, que devem sem- pre o brilho á luz a que estão expostos e que reflectem.
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Mas isso mesmo era bom, e d'ahi po- deria vir bem : era incentivo, gosto pe- las cousas úteis, desejo de se distinguir por ellas.
Quando mesmo se chegue a ser n'isso, como outros o são por esse mundo, cada um no seu ramo, um pouco frigideira^ o resultado para o adiantamento e para os interesses da causa não tem que pe- rigar n'isto como n''outras especialida- des; pelo contrario, os que o nâo pare- cerem um pouco, serão indifferentes, e constituir-se-hão surdamente e mole- mente emprejudiciaes; ou serão inimigos sem ninguém saber porque, sem o sa- berem elles sequer, mas pelo gosto de empecer, de desacreditar, de destruir: ha gente que vem ao mundo para negar tudo ; começaram por negar a divindade
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de Jesus-Ghristo, e depois racionalismo, positivismo, pantheismo, naturalismo, critica, até chegar ao doce desafogo de chamar tolos aos que se interessam por alguma cousa, que se dediquem, que tenham fé, que trabalhem . . .
Por isso um ou outro não entendeu bem, que a associação podesse ser o espirito e a Índole d'este tempo.
Os descrentes não eram simplesmente teimosos; de ordinário não se é assim de nascença: principia a cousa por uma borbulhinha e alastra depois pelo corpo todo; é raspar a unha nos queixosos, que se dão mal com tudo, e de tudo e de todos têem que murmurar, e quasi sempre se acha logo um ambicioso maior ou mais pequeao, que não acertou no tiro, e que se vinga a querer queimar o
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que nâo pode tomar seu ou o que ado- rou em vão.
E assim em tudo. Nmiea se ha de ver cônjuges felizes quererem divorciar-se, nem ouvir patentes grandes queixa- rem-se da dureza do serviço militar: nâo são as formosas que se conspi- ram contra a injustiça da natureza, que dividiu o mundo feminino em dois repartimentos deseguaes, de um lado as bonitas e do outro as feias; de certo que não seria José Estevão quem se queixasse do império da palavra para dominar as multidões; não será Carlos Bento que reprehenda a camará por admirar a finura e o aticismo de um epigramma, que faça ás vezes a philosophia de uma situação melhor e mais profundamente do que largos
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discursos pesadões; e D. João é de pa- recer que as mais suaves divindades, os entes mais perfeitos da creação, são as mulheres, por gostarem d'elle.
Quem é mocho é que se dá mal com tudo, e tem ódio á sociabilidade. Con- vém na opinião d'esses sujeitos enclau- surar-se um homem, beber agua, comer ervas, deitar-se ás Ave-Marias, empre- gar o dia em cousas de interesse próprio, e ser a todos os respeitos de uma mori- geração própria para dar exemplo ao mundo; sem isso, na opinião d'elles, nunca se chega a qualquer cousa pa- recida com o ser gente; amor, paixão, prazer, — isso mesmo são associações e inspiram-lhes tédio . . . Alguns levavam o ódio pela associação a não quererem sequer a da familia. Foi por elles que
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se espalhou que não ha cousa melhor que nâo gostar de ninguém, senão cada um de si, e isso já é boato velho que mais ou menos agradou sempre, — a prova é que os antigos pasmaram da celebre associação pequena de dois ami- gos, e mais eram irmãos, e mais eram gémeos: e, maravilhados de ver que nunca tiveram bulhas e sempre se de- ram bem, elevaram-os ao posto de deu- ses, e puzeram-03 em evidencia, em constellação, para os mostrarem ás as- sociações futuras: Castor e PoUux! . . . Tudo isto acabava sempre por ir pa- rar aos gracejos do thealro. Nada es- capava á farça e ás cópias. Até os anda- dores das almas tiveram de brincar no tablado! Coitados: como que ainda se ressentem d'isso.
Lisboa de hontem i3i
— Para as almas! diziam estendendo a bandejinha.
E por conservar-se o costume, davam- Ihe alguns os seus cinco réis para ajudar as despezas da missa da madrugada, em que se pede pelos mortos para aliviar as suas almas se estiverem no purgatório . . . Com o lemhrarem-se das almas, mais se lembrava cada qual da sua, dando-lhe fesmola. Se até as plantas nos sitios em que tudo é sombra se voltam para o ponto de onde emana a luz, quanto mais nós que, por mais ás escuras que este- jamos, sentimos a alma precipitar-se por instincto para o sói da luz eterna ! Entre- tanto, desde a parodia que tanto diver- tiu Lisboa, os próprios que dão esmolla agora, como que se lembram do Tabor- da, e mostram um signal de riso . . .
132 LISBOA DE HONTEM
— Para as almas ! diz o pobre anda- dor. E, ao affirmar-se na cara que alguns fazem a procurar o troco na algibeira, também elle poderia rir-se, e TÍr-lhe á idéa que para muitos esse mo- mento é que é o verdadeiro sacrifficio da missa !
Mas não se ri.
Deixa que moffem d'elle, um ou outro dos que passam ; e pensa de si para si :
— Com o irem-se-lhes as illusôes, com o perderem os que amarem, elles chegarão ás tristes horas de solidão, á fria aridez do abandono, e hãode incli- nar-se então para a egreja, e perceberem que só as preces podem restituir, pela actividade da resignação, a energia hu- mana e christã ... Ah 1 Elles riem-se, e lembram-se do Taborda . . . Para cá
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virão, quando a morte lhes roubar os que estimam! Então me darão esmoUa sem se rirem, quando eu lhes disser: — Para as almas.
Odiaram o Taborda durante annos. Não sei se esse ódio lhes passou, com o passar a peça. Taborda levou a malicia a ir conversar todos os dias com o anda- dor dos Martyres, ao tempo dos ensaios da peça.
Quem passava pelo Chiado das oito horas para as nove, via-os no adro con- versando :
— Aquelle é o Taborda? diziam as senhoras, pasmadas de o verem ali de caturreira com o andador.
—t o Taborda, é!
E elles a conversarem ... a conver- sarem . . .
134 LISBOA DE HONTEM
O riso foi n'essa épocha a dominante, como se diz na musica. Dos homens mais eminentes de então, só um talvez escapou ao que o povo chama a chalaça: foi Alexandre Herculano. Não foi verda- deiramente o seu talento inventivo o que produziu uma admiração profunda; di- zia-se que o ponto de partida do Euriso era o mesmo de Jocelyn, o celibato do clero catholico, e a imaginação fugia tainbem para o René; mas a obra reve- lava uma tão admirável superioridade de estudo, a épocha da destruição da mo- narchia goda na Ilespanha pela invasão árabe o os costumes e caracter social, eram apresentados com tal feição de au- thenlicidadc, que as tendências anfiqua- rias fulgiram n'um extaze de enthusiasmo e aclamaram o grande pensador e grande
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investigador como um deus. Sem que a politica entrasse de nenhum modo nos seus escriptos, Herculano teve o poder de despertar no paiz, e notavelmente nos portuguezes que no Brazil viam de longe a pátria á luz da sua saudade e do seu amor natal, uma febre de adoração com- parável apenas á que em Itália se tem consagrado a Garibaldi. Foi um escri- ptor que teve influencia litteraria: não teve leitores e admh*adoreSj teve fanáti- cos. Ninguém melhor do que elle conhe- cia a historia, nem encontrava n^ella com maior profundidade a nota philosofiea. Era um homem fadado para a lucta; fora soldado, expuzera a vida, tinha o fogo supremo das convicções, e a inven- civel tenacidade de um caracter valente, severo, e desprendido em tudo e sempre
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das ambições e ufanias a que teem sa- criticado quasi sempre em Portugal os grandes e os maiores.
Outros dois, lidaram tanto como elle, e consagraram ás lettras quanto amor po- deram ; Garrett, e Castilho ; Garrett viveu mais ou menos contente,, da sua terra e da sua gente, porque tinha génio de nâo attentar nas misérias do mundo, ou figurava talvez que não dava por ellas : Castilho viveu minado de desgostos, de perseguições, de malquerenças, de ódios sem motivo, de calumnias, accusações vagas, punhaladas á falsa fé. Envenena- ram-lhe a vida os inimigos, e os falsos amigos, que ainda mais o amarguraram com verdades e mentiras que iam repe- tir-lhe, emquanto elle consumia o tempo em trabalhos úteis perturbados sempre
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pela damnada briilalidade dos ingratos e dos ruins.
A morte, por que assim diga, salvou-o. Foi curioso o effeito de perspectiva que ella produziu. — bastou-lhe um momento para transfigurar tudo e coUocar o poeta n'uns longes completamente favoráveis, apagando qualquer leve senão, perante â grandeza da sua vida e da sua obra, e restituindo-lhe inteira a magestade au- gusta e serena, que tantas vezes se tinha feito diligencia de empanar.
Nada d'isso serviu de lição, nem prestou para exemplo. O paiz, indiffe- rente e frio, vae sendo o mesmo. Im- pressões de momento pela falta de um homem de lettras que ninguém em Por- tugal substituiu: mas, impressões de momento, como quando se vê uma pes-
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soa c^^ir ao mar. Eterna historia 1 Es- tão os passageiros na tolda a passear, ouvem a bulha de uma queda, debru- çam-se para vêr, perguntam como foi isso, dizem uns :
— Forte cousa ! Que desgraça ! Outros :
— Coitado !
E o homem merguHia, apparece ainda; chama . . .
Depois o navio continua no seu ru- mo.. .
Depois os passageiros, encostados, olham para a agua, depois para o ceu, depois uns para os outros; e, conver- sando :
— íamos nós dizendo . . .
Os homens de talento em Portugal teem tido sempre por destino não inte-
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ressar ninguém. Falla-se d'elles, diz-se que tcem merecimento, mas nunca ha quem trate de os ajudar como se elles fossem outra cousa, se tivessem um ne- gocio qualquer, uma loja, e quebras- sem . . . Tem-se raiva á superioridade, entre nós ; e, nâo contentes de deixarem ir entregues ao seu mau fado, os que forem superiores, amarguram-os ás ve- zes por gosto e recreio, promovem-lhes guerras, espalham boatos, cruxificam-os; depois quando os vêem mortos, vão até ao cemitério, — nunca, assim mesmo, em tão numerosa aílluencia como quando lia tropa — e, chegados lá, querem ainda fazer render o morto :
— Quem falia?
— Então ninguém falia?
— Não ha discursos ? ! !
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— Homem ! Essa agora ! . . .
Nunca em vida o auxiliaram, nunca lhe quizeram verdadeiran^ente bem, nunca o defenderam : pelo contrario lhe fizeram de vez em quando as pirraças possiveis : mas, n'aquelle dia todos os louvores lhes parecem pouco e pedem algumas flores de eloquência á beira da sepul- tura . . .
Quando Castilho deu uns saraus ht- terarios, ensinando as creanças a lêr, instruindo-as e recreando-as, ia lá de tempos a tempos uma cambada de ta- fues desgostal-o, afiligil-o. Ha gente. em quem os sentimentos ruins nascem como bichos, não engendrados por fora, mas concebidos e a ferverem na podridão in- veterada da sua substancia.
EUe nunca poude entender-se de todo
LISBOA DE HO^TEM i41
bem com o mundo ; a acção que exerceu sobre a mocidade, foi grande nos pri- meiros tempos; nos últimos annos quasi nenhuma, — ella aggrediu-o por vezes, e elle a ella: foi a única relação que ti- veram.
O maior miai proveiu talvez de não poder existir afinidade entre o poeta cego, e a maior parte da gente, creatu- ras de feliz espirito, que não se deixam surprehender pelas visões, pelas chime- ras sublimes, pelas angustias mysterio- sas que minam e devoram as almas dos poetas. E elle era propriamente poeta; até no que se reputavam inconsequen- cias suas, caprichos ; males imaginários, que tantas vezes iam dar em dores ver- dadeiras.
Depois, a humanidade tem horas em
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qne é másinha. Havia de vez em quando um ou outro, por quem elle fizera o que havia podido — e ninguém era mais dado a empenhar-se e a trabalhar pelos outroSj — que, n'um bello dia, o encon- trava pela rua, dando o braço a um pe- queno, a um criado, e ás vezes a um de seus filhos. Então, para não estar a demorar-se, para não ter que ir apertar a mão amiga e illuslro d'aquelle velho, o sujeito, logo que o avistava, sumia-se.
Castilho não o via. coitado: daria elle alguma coisa para isso. por pouco que o outro tivesse que ver: mas via-o a pessoa que acompanhava o poeta e que lhe dizia:
— Vem ali o sr. fulano!
N'isto, o fulano dosapparecêra.
E o outro :
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—Quando digo vem, vinha . . .
— E então?
— E então viu-nos e metteii-se para a travessa ...
Caslilho desde esse dia derprezava aqiielle homem; é natural; e quando al- guma occasião tivesse de exprimir a res- peito d'elle um sentimento de desdém, de desestima, ainda o mundo o accu- sava a elle e o arguia de sentir d'esse modo, tendo-se interessado tanto pelo homem n'outros tempos:
— Vão lá fiar-se !
Os dissabores azedaram-lhe o cara- cter, e, uma vez olíendido, Castilho não perdoava. Ás vezes ia até á exageração do despeito. De mais a mais linha muita graça, graça conceituosa, e também graça violenta; em lhe convindo fazia-a va-
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ler. A Tosquia de um camelo é formi- dável.
A conversar era prodigioso. Por sen- timento de artista a sua palavra tinha a força de uma arma, que atirasse o ini- migo ao riso vingador; e nos chistes singelos da conversação amável, nin- guém o excedia em faciUdade e em es- pirito. De uma occasião, por exemplo — citodhes isto a propósito de espirito e facilidade — tendo-se mudado para a rua Nova de S. Francisco de Paula, fui ali vêl-o. Andava-se a arrumar os li- vros: estava lá. visitando-o o antigo prior de Santa Isabel, de quem Casti- lho era muito amigo. lam-se tirando os jivros dos balius, dizia-se o titulo da obra, e o poeta indicava em que armá- rio c junto de que outras obras deveria
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aquella ser collocada. Por entretimento e para concorrer na lida, o prior e eu ajudámos esta tarefa.
N'isto o prior, sobraçando nâo sei quantos volumes, perdeu os óculos:
— Mau! disse. > E parou.
— Que foi? perguntou o visconde. — Estou bem aviado. Perdi os ócu- los!
O poeta sorriu-se :
— Procura, dizem que tudo se acha nos livros! Lá devem estar!
Foi sempre e até á ultima um lida- dor litterario. Também, como Alexandre Herculano, não ajoelhou nunca deante da fortuna para ella o enfeitar com os laços da sua côr, nem quiz outra cousa senão ir cumprindo a sua missão de
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poela n'este mundo; mas Herculano era um solitário, e um austero; e Castilho comcpanto mal lhe chegassem aos ou- ndos os rumores do dia, as mtorias, disputas, intrigas, derrotas e calumnias da vida publica, não logrou as vanta- gens da velha máxima — esconde a lua vida e espalha o teu espirito !
Nunca ao lêl-o se apercebeu alguém, se lembrou sequer da idade que elle ti- nha; morreu de setenta e cinco annos. Quê, annos! Não ha annos para ho- mens d'aquelles. A poeira amarrota e rasga-lhes a certidão de idade. Escrevia ainda com tanta frescura como nos dias em que o tempo sorria á sua juventude. O amor era o sói da sua alma : alumia- va-lhe as profundezas, dava-lhe calor na superfície, despertava-lhe com os
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seus raios a primavera que elle adivi- nhou e cantou, transformava em flores, e em borboletas coloridas do matiz mais vistoso, as idéas ingratas que por al- gum momento serpeassemn'aquella com- prida noite a que a desgraça o prendera, e fazia desabrochar no seu peito abe- lhas que distillavam mel, e a que o mel adoçava o ferrão . . .
Passou os seus dias a poetar, e os se- rões a ensinar as creanças, a ouvir ler, ou a escutar musica. Por isso também o sói que lhe servia de luz não durava só um dia; nem ia deitar-se nas nuvens, como o nosso, ás vezes sem sequer as doirar. . .
Foram eminentes como as suas qua- lidades litterarias, os serviços que pres- tou ás letras, O que elle fazia da lingua
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portugLieza, como a conhecia, como se entendia com ella, como a levava a ex- pressar tudo com os segredos do vigor e da graça, sempre pura, e conforme sem- pre ás leis inflexiveis da belleza harmo- niosa ! E não é o único louvor que deve dar-se-lhe ; também Roma admirou Te- rêncio no tocante a saber a sua lingua mais do que qualquer outro poeta latino — sem exceptuar Horácio e Yirgilio — e, comquanto esse louvor fosse grande, nâo considerou nunca que elle indicasse por si só a valia absoluta de um gi'ande talento. Quando se lêem as Georgicas pega-se indiíTerentemente no poeta latino ou no seu interprete portuguez e em am- bos se tem Yirgilio á vista, a tal ponto elle foi n'esta obra traductor primoroso, sem versos parasitas, traduzindo com
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vida, fidelidade, côr, desenho, correcção, harmonia, tudo ; nâo sei se a musa que favorece o berço dos poetas lhe havia concedido largamente a invenção; não sei também se as suas traducções de Mo- liére foram impecáveis: mas em todo o caso, dizer que Castilho sabia a sua Hn- gua e foi excellente traduclor como cen- tos de vezes se tem dito para não dizer mais nada, não basta : em todas as suas obras sente-se um moralista e um poeta, revelando-se em conceitos de uma gra- vidade penetrante, profunda, própria de uma alma apaixonada e verdadeiramente humana !
Trabalhou muito, e teve a virlude rara de fazer sempre quanto poude pelas let- tras, e por todos em quem conheceu ta- lento.
loO LISBOA DE HONTEM
Garrett teria sido menos popular do que Herculano, e do que Castilho, ape- sar da grandeza rara do seu génio, ou talvez por causa d'isso mesmo, se nâo fora o thealro. O povo conheceu-o pelo Alfageme ou a Espada do Condestavel; não o conhecia pelo Auto de Gil Vicente, nem viria a conhecel-o pelo Fr, Luiz de Sousa, que nunca attraiu publico, ou pela Sobrinha do marquez, que foi pa- teada. Assim é a historia; e é ella tanto assim, que na occasião em que patea- ram esta peça, que é uma bellesa, que é uma jóia, Garrett, que estava n'um camarote de bocca, debruçou-se um pouco, e disse, n'um tom de voz que a platéa ouviu:
— Pateiem, bárbaros!
O Alfageme foi a grande peça portu
USBOA DE HONTEM lol
gueza para o publico do seu tempo. O theatro pôl-a em scena com esmero, mandou pintores a Santarém para trasla- dar as vistas, e escripturou cantores para os coros e cópias do primeiro acto. A musa theatral deu a Garrett n'essa épo- cha, como a um amante querido, tudo que o amor pode dar; o publico perce- beu-o, admirou-o, e, de akuma maneira ficou entendendo mais vagamente, ou menos vagamente, que aquelle homem linha o condão especial e superior de fazer sempre grande tudo em que me- chesse . . . Não tratou de se informar muito a seu respeito, mas acreditou que elle fosse extraordinário ; e depois cons- tou-lhe que Garrett estivera em França e em Inglaterra, trabalhando, escre- vendo; que algumas de suas obras alli
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haviam sido escriptas e publicadas; que era conhecido^ que era considerado lá fora ... O estrangeiro é. de algum modo, para nós portuguezes. um principio de posteridade ...
Herculano impunha mais. pelo facto de se saber que era homem de estudos austeros e ao mesmo tempo de opiniões inabaláveis, capaz de as defender quando fosse preciso com firmeza e com lógica, encostando-se a grandes e velhos livros, a uma papellada iuimensa e riquissima, reforçando isso com um talento vigo- roso, um raciocinar seguro, e uma ha- bitual reserva e isenção que ainda dava maior valor a esse trabalhador obsti- nado e infatigável, sempre á procura de augmentar a sua erudição, vivendo n'um casaréo immenso, lá na Ajuda,,|não saindo
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d'alli senão para ir á Torre do Tombo. Era o homem do retiro estudioso, de existência de trabalho desinteressado; vida de homem honrado, consolada ape- nas pelos gosos do estado.
E Garrett?
Garrett, não. Garrett estudara immen- so, sabia immenso, trabalhava immenso, deve-se-lhe haver tbeatro nacional, foi por si só, ellc, uma littcratura, como disse de uma vez Carlos Bento n'am ar- tigo, mas, para a opinião, para os me- diocres, o mesmo que dizer para quasi toda a gente, Garrett era um homem de talento, mas perdendo quasi todo o tempo na elegância c nos amores.
Erudito, mas homem de gosto por excellencia, como nunca houve em Por- tugal, como difficilmente tornará a ha-
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ver, Garrett nem na êscripta nem na vida tinha ares de gêbo: o paiz era gêbo, e embirrava com isso.
Quando se fallava de Garrett, não se ouvia logo dizer de todos os lados :
— Oh ! Que espirito brilhante ! Oh ! que poeta verdadeiramente inspirado! Oh ! que artista prodigioso !
Nada.
O que se ouvia dizer era isto : — Oh! que homem tão affectado! Tem tudo postiço! —Tudo!
— Cabellos, dentes, barrigas das per- nas . . . Até usa espartilho !
A elegância n'es5a épocha era anli- pathica. Dizer elegância equivalia a d'i- zer Sociedade do delírio, equivalia a dizer marquez de Niza . . .
LISBOA DE HONTEM loo
O marquez de Niza espalhava terror em Lisboa, como os demónios das ma- gicas espalham fumo de si quando sal- tam do alçapão. Esse homem era para quem o visse e lhe fallasse o typo do gentil-homem de raça e espirito ; entrara na vida por uma porta doirada, conse- guiu levar em Lisboa durante muitos annos uma existência phantastica e ca- prichosa, foi o ultimo elegante, o ultimo grande vivmr á grandes brides, e ullimo gastador explendido e notável pelas ex- travagâncias, foi também notável pela sagacidade, pelo espirito, e pela instruc- ção. A vastidão dos seus conhecimentos collocava-o mais subidamente do que na simples estimação do cavalheiro instruí- do: andava já perto do que se chama um sábio, se é certo o que d'elle julga-
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vam os competentes, que o conheceram bem e o trataram ; pela minha parte co- nheci-o pouco: a edade abrira entre nós como que um fosso : no tempo em que elle mais floresceu, era eu pequeno, e, quando entrei no que propriamente se chama mundo, ia elle já a retirar-se. Era homem de immenso espirito, e ainda <|ue haja quem diga que o espirito e o talento andam ahi pelas ruas a cada canto, a verdade é que os que dizem isso teem a vista curta; os homens verdadeiramente de espirito teem sempre sido raros em Portugal; ha muito quem faça profissão das coisas, e pouco quem esteja no caso de se abalançar a isso, a não ser como o uso tem auctorisado, por filáucia e nâo por direito; tem havido trezentos homens a fazerem versos, no paiz, e só dois ou
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tres poetas; todos teem servido aqui para deputados, e sempre se tem apon- tado a dedo algum, raro, que pense e falle. No fim de uns poucos de annos de vida elegante, cortada nos ullimos tempos, de luctas e de difficuldades, o marquez de Niza ouviu uma noite, por entre o tinir dos copos e do riso, estalar o lagedo com as passadas temi- veis do commendador, como na peça antiga . . .
Era a edade que lhe ia subindo a es- cada. . . Levava adeante de si o espectro da doença. . .
O marquez quiz ainda desafial-a :
— Olá! Aqui tem cadeira, e talher! Toque n'este copo ! A saúde do commen- dador!. . .
A ceia durou um anno e tanto. . . Aca-
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boii em Cotterets onde o famoso fidalgo foi morrer.
N"essa hora o Champagne em Portu- gal estremeceu nos copos !. . .
Garrett era um erudito, mas a sua erudição vinha nas azas da poesia e da graça ; era um clássico, mas escrevia para que todos o entendessem; e amava a sin- gelesa, que é a grande condição nas artes, a divina simplicidade c|ue foi o segredo de Canova, e o segredo de Bellini; era um delicado, que applicava as suas ra- ras faculdades a concepções que apre- sentavam sempre o caracter de uma originalidade bem definida e bem mar- cada. Era um poeta; puro, e stibhme. Amou, lidou, cantou. Não considerava mediocre tudo que fosse paixão, senti- mento ; não condemnava o seu talento a
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viver no cume de uma espécie de Monte branco a que se chama arte com A gran- de. Não encastelava substantivos e adjectivos raros a poder de velhos, e adoptava de vez em quando umas ex- pressões que lhe pareciam próprias d'este tempo, por pensar talvez que caminhando as idéas não é natural que fiquem pa- radas as palavras, e que quem tem ca- bello se ponha de rabicho, só porque seu bisavô usava chino. Chino, usava-o elle, coitado, mas era porque, segundo se dizia, desde que em pequeno dera uma queda, ficara com a cabeça estro- piada.
Servia-lhe o estudo, para dar os re- flexos brilhantes que só o estudo pode dar, mas o gosto, a suprema prenda, do ta- lento, scintillava em tudo que elle es-
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crevia como rebentando de um focco se- creto e inexgotaveL
Teve uma vida agitada; passou com mais dedicação do que paixão no trilho da politica: não amou senão as lettras, não gostou senão d'ellas e da arte, e do amor, e também da sua terra. Poderia ter vivido longe d*aqui, n'alguma das nossas legações; mas os mais bellos le- gares do mundo, não conseguiam fazer- Ihe esquecer o paiz em que nascera; esse sentimento communica-o a natu- reza quando da o sopro da vida a cer- tas organisações poéticas e generosas. Fez muito pelas nossas coisas, por elle fizemos pouco, e quando foi ministro e decretou um dinheirito para haver cout sen'atorio, largaram a gritar os jornaes do tempo que não se queriam ministros
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poetas, e passa tora esbanjadores, e ahi está para cpie servem os talentos . . . Mas elle continuou a gostar da terra, por ser a sua, e deixou-os fallar; arranquem um homem que viver perto do polo aos seus montes de gelo, se o quiserem ver esmo- recido; transportem o Africano para a nossa zona temperada, e terá saudades dos areaes ardentes . . . Assim também Garrett precisava d' essas mesmas amar- guras que lhe deram, e que são sempre os mimos que Portugal dá aos que o il- lustram.
Foi um génio, Garrett. Não só pode fallar d'elle como dos outros homens de Portugal, por mais notáveis que elles te- nham sido. Era um artista superior, em tudo. Diz-se que Péricles o Olympico ti- nha na tribuna o gesto sóbrio, a attitude 11
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tranquilla, a feição magestosa de uma estatua de mármore; Garrett teve nas lettras, no thealro, no parlamento, a alta serenidade, a bella e luminosa singelesa que foi a primeira qualidade dos gregos dos bons tempos, e que será sempre o principal dote dos artistas !
Disse eu atraz que Lisboa era gêba n'*esse tempo: é verdade que era, mas emfim tinha essa desculpa, a de nâo es- tar civilisada; hoje é que já nâo tem ne- nhuma,— está civilisada e gêba.
Até fez galla de acabar com quasi tudo que tinha. Preferiu, por exemplo, — a tempo em que nem se pensava em americanos — acabar com os omnibus, os antigos omnibus, que tanto de algum modo se pareciam com ella.
Inventou tudo para se ver livre d'elles.-
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Chegou a calumiiiar õs cavallos. di- zendo que tinham sarna!
E nâo tinham. Coçavam-se por enfado, aborrecidos da sua vida com essas coi- sas todas; ia-lhes isso fazendo sarna, effectivamente : mas nunca a chegaram a ter.
Queridos e veneráveis omnibus! Lem- brarmo-nos que nunca mais tornámos a ver aquellas caixas formidolosas, aquellas bisarmas, aquellas panças de elephante. bumba, bumba, pelas ruas fora, enchen- do-as de lado a lado e levantando-se até á ahura dos terceiros andares ! Quanto eram imponentes na sua deformidade! Que brutalidade magestatica! Malfeitões, desairosos, pantafassudos, tudo que qui- zerem, mas graves, sinceros, omnibus bons homens, como uns valentões que
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ha de barriga saida e pata grande, com qaem se pode contar para tudo!
Quando elles desciam a calçada de S. Sebastião da Pedreira, era de uma pessoa, em os avistando, deitar a fugir: parecia que vinham arrasar tudo; eram omnibus dignos da lUiada, omnibus ho- méricos, truz, catrapuz, abalando os pré- dios em lhes passando perto, e fazendo benzer as lavadeiras, que os encontra- vam, montadas nos seus burrinhos, es- cabeceando com somno, e acordando espavoridas ao verem aquelle espectáculo monstruoso !
Que existência de aUernativas e vi- cissitudes! Quem lhes diria em 1835, por occasiâo da fundação da companhia, que as coisas chegariam a esse triste des- enlace! Tudo foi alegria n'esse tempo,
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tudo pareceu saudal-os com enthusias- mo : approvaram-se os estatutos em as- sembléa geral de 13 de abril de 1S36 ao som de parabéns: << felizmente,» ^ ainda bem, » <í agora sim, » e viva ! e viva ! emit^ tiram-se logo quarenta contos em qua- trocentas acções de 1001000 réis; os directores, Manuel António Vianna Pe- dra, Bartholomeu Lourenço Martelli, Francisco Alexandre Ferraz, Martin, Victor Jorge, Augusto Xavier da Silva, andavam satisfeitissimos, recebiam abra- ços de toda a gente, conhecidos e nâo conhecidos, pela felicidade d'aquella idéa, pelos bons auspícios da empreza, para que fosse tudo cada vez melhor, como era de esperar e como havia razão para ser. Lisboa pulou de jubilo a gritar: f Vamos ter omnibus!» com a alegria
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com que os adolescentes dizem: «Ama- nhã principio a fazer a barba !. . . > Mas do mesmo modo que nos cançamos d'essa felicidade, de sentir na cara o sabão e a navalha, assim Lisboa se cançou dos omnibus, e pareceu, de repente, n'um bello dia, ver desdouro no que, de prin- cipio, vira uma providencia !
Temos grandes parecenças com os athenienses d'outr'ora ! Não seremos tão espertos como elles, mas no génio não ha gente mais parecida; gostamos por exemplo mais de adivinhar as coisas do que de as saber a preceito, que é o que lhes succedia a elles no dizer de Plu- tarco; elles eram muito cumprimenteiros, e nós somos tão attenciosos que andamos sempre a agradecer tudo nos jornaes, a quem nos trata bem, a quem nos dá chá'
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a quem nos cura o parente ou também a quem o deixa morrer ; regalamos-nos de ser tafues, elles sobremaneira o eram; como elles sacrificamos tudo ao luxo, vi- vendo ás vezes que é uma lastima, a co- mer feijão, batata e fava, para que assim nos chegue o remédio para as modas novas, que não vamos mostrar para a porta Dypilonica, mas para o Passeio Pu- blico: finalmente com o gostarem elles tanto de ver os navios de Garthago sul- car os mares em todas as direcções, para si não queriam aquillo, e nunca nave- gavam para lá das columnas de Hercules ; exactamente como nós, que nos gloriá- vamos muito deleromnibus, muitíssimo, realmente muito, mas para não andar nelles!
Quando n'uma noite de inverno, um
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moço que estava de vigilia, Albino Go- mes. 80 ("liamava clle. deu pelo fogo, o famoso fogo das cocheiras, e pediu soc- coiTO, soltou o primeiro grito prophetico da agonia d*aquelle negocio todo.
Estavam dormindo socegadamente onze empregados no estabelecimento; o fogo principiara n'um caixão de ce- vada: de quarenta e nove cavallos po- deram apenas salvar-se vinte e dois. Perderam-se na noite lugubremente ao clarão do incêndio, ao ruído das bom- bas, dos tocjues de sino, e da vozearia do povo, os gemidos, os arrancos de vinte e sete cavallos, que se despediram, por entre o horror d'aquella catastrophe, das viagens a Bemfica, ao Poço do Bispo, a Belém ...
N'esse mesmo anno foi rescindido
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pela companhia o privilegio. A sorte pa- recia querer oppôr-se á prosperidade d'essa empreza: então lucta, por lucta, quizeram-a completa., e a fortuna., que se compraz em ajudar os audaciosos, coroou por uns tempos aquelles esforços.
As despezas eram grandes ; foram de quatrocentos e cincoenta e um contos; gastaram 449:514 alqueires de cevada, o que quer dizer réis 158:744§008 : de palha foram 62:843 pannos, o que si- gnifica 31:579i>709 réis. Já não é mau para palha!
Compraram de 1835 a 1863 cem cavallos, morreram-lhe oitocentos e trinta e sete ; não digo que fossem de uma pro- veniência rara, filhos de mães egypcias descendentes da raça celebre a que cha- mam Nejdi, infatigáveis a ponto de per-
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correrem quarenta léguas a galope sem parar um segundo para tomar fôlego» cavallos dignos de serem resgatados a preço de duzentos camellos; também não pretendo affirmar que tivessem pren- das galantes, porem-se de joelhos, com- primentarem, apanharem um lenço de assuar.. e marcarem as horas com a pata ; mas erafim eram cavallos fortes, sãos, magnificos, e os omnibus descan- cavam n'elles com uma confiança sem limites.
Os outros, os omnibus pequenos, que lhes faziam concorrência, voltavam-se de vez em quando, e n'isso realmente eram mais pittorescos; estes, não; estes linham só de tempos a tempos algum desaranjosito amável para divertir os passageiros. Scenas graciosas. De uma
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occasiâo, por exemplo, vinham do Poço do Bispo duas senhoras com dois mari- dos; de repente, catrapuz. Quebrou-se uma roda do omnibns?Atropelou-seuma velha? Nada. Vinha um cyrio, ao Ter- reiro do Trigo, e o cocheiro quiz romper.
— cPára ahi! Pára! Hé! Alto! Pára ahi!»
Balbúrdia, policia, povo: o grande diabo. Apeia-se toda a gente; os mari- dos começam a parlamentar com a tur- ba, defendendo o cocheiro, fallando á policia, explicando-lhes o caso. As se- nhoras, entretanto, assustadas, aílQictas, encostam-se a uma porta, á espera que serene o caso. De repente ouve, uma d'ellas, dizerem-lhe:
— Coitadinha! Então está com muita faneca (susto)?
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Ella, moita: aperta o braço á outra, que cuidou que o homem era conhecido da sua amiga por vèr o desembaraço com que lhe fallava, e respondeu-lhe amavelmente:
— Ai! Estou a tremer toda! Pobre homem! Coitado! Deus queira que não lhe façam mal. Acha que vão prendel-o?
A outra, a cotovelar o braço á amiga; e o homem a accrescentar :
— Não prendem, não; e se o pren- derem, logo o soltam. Vamos nós dar um passeio, minhas joiasinhas, para não estarmos aqui parados depois do susto, que até nos pode fazer mal. Não lhes pareece isto acertado? Então, vamos lá, vamos . . .
N'isto chega um dos maridos: vê o homem de palestra com sua mulher e
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com a outra, cuida que é conhecido da outra, comprimenta-o com muito bom modo :
— Muito boa noite!
. Em seguida apparece o outro marido, vê o sujeito com a sua gente, tira o cha- péu, dá-lhe a mão:
— Como tem passado ?
E ahi ficavam todos e iam de rancho conversando, como se se conhecessem de pequenos.
O grande omnibus ! Omnibus por ex- cellencia !
Havia pobresinhos, que não pediam nas paragens senão a quem ia nos om- nibus da companhia. Eram os melhores pobres! Os pobres mais ricos. De uma vez deu o cocheiro uma moeda de seis vinténs a um d'elles, — ainda havia
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moedas de seis vinténs ! — e o pobre res- pondeu :
— Agora não tenho troco, sr. Antó- nio!
— Bem; fica-m'o devendo.
E o pobre n'um extasi de grati- dão :
— Deas o avivente e aos omnibus da companhia até que eu lh'o pague, sr. António!
Era o desejo que tinha de tornar eternos os omnibus e o cocheiro! Mas tinha de ser.
Cairam de vez.
Quando passavam, enormes, pesados, methodicos, já a modo tristes, arredios, meio phantasticos, de um feitio que pas- sara de épocha, vagarosos e abrutados como elephantes carregando torres, não
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eram já bem d'este mundo, e dizia a gente ao vel-os, como na bailada:
— Os mortos andam depressa ! . . .
Á medida que temos visto fugir as prendas mais caracteristicas da Lisboa gêba, fingimos sempre ter saudades . . .
Uma das curiosidades lisbonenses eram os Tiples. Dizem-me que ainda vive o famigerado Ferreirinha. cantor da Sé, que no Kyrie eleison e n'outros cân- ticos religiosos brilhava em todas as Endoenças, mercê da sua voz agudis- sima de soprano.
Homem enorme de altura, mas ma- gro, fusco, deslavado, de carnes moles e pelles cabidas, que fazia pena ver. A julgar pela sua estatura, poderia ter sido um homemsarrão de extraordinária corpolencia, se a sorte desde menino
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houvesse sido para elle mais piedosa. Não tinha barba. As compridas e esgal- gadas pernas tinham um andar frouxo e fracalhâo, e era triste o aspecto geral d'elle como de um homem aborrecido e contrariado, a quem falte alguma coisa. Por não cantarem senhoras nas egre« jas, os pobres Tiples suppriam-as esga- niçan Jo-se ; na certeza de que, qualquer que fosse a edade em que estivess^?m, nunca mais lhes mudava a voz! Chega- ram a ter fama, e a serem muito esti- mados, esses exóticos músicos. Aqui veiu a S. Carlos o celebre Crescentini, chamado lá por fora o Orphéo italiano ; e tanto este Ferreirinha se desempenhava a contento geral, que o conde de Far- robo, que ouvira os principaes cantores daCapellaSixtina, considerava-o. . . não ^
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direi um digno descendente de Cafarelli ou de Farinelli, já que lhes seria dififi- cil ter descendentes, mas um novo Pro- teo n'esse género, homem pelo traje, mulher pela voz.
Era opinião corrente que a musica sacra nâo podia passar sem estes sopra nos artificiaes, que já não se fabricavam, mas de que as festas de egreja se iam servindo em quanto duravam; dizia-se que nunca as mulheres, no coro de uma egreja, fariam sobresahir tão dignamente a pureza d'aquelles cânticos !
Um cónego Rebello que aqui houve, e que era, como o Ferreirinha, grande frequentador de theatros, contava casos de se estalar de riso a respeito dos can- tores da Sé. Quando o baixo Figueiredo, que supponho também ser ainda vivo,
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cantou na Rua dos Condes, por con- tracto especial, o Fra-Diavolo, — fa- zendo elle a parte principal, sendo a dama a Radich, e o inglez o Sargedas — o actor Victorino, que era homem muito distrahido, largou a dirigir comprimen- tos e louvores ao baixo, julgando-o o ti- ple — com todos os requezitos d*essa prenda — só pelo facto de ser cantor da Sé. ..
— Xão parece! dizia-lhe Victorino. Digo-lhe que não ha outro assim! Dê cá um abraço. . . E tem força ! Ora, não ha! Ora, não ha! E o caso mais raro! E que bella apparencia de homem, re- forçado, com boa côr ! Assim é que ainda nao vi !
E o Figueiredo a agradecer, sem per- ceber bem o que motivava uma tão so-
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lemne estupefacção da parle d'âquelle Gomico primoroso.
O Bonifácio goza-se ainda hoje de grande aureola como tiple, e quando elle vae cant<ir ao Loreto na novena de Nossa Senhora, cae alli o mundo em peso para se deliciar a ouvil-o. É musico cons- ciencioso, tem alta e subida voz, forte nos agudos, e de melodiosa entoação. Mas o Ferreirinha era o rei dos tiples, --0S tiples também devem ter rei. Fer- reirinha! lhe diziam. Es insigne! Não ha de certo no Vaticano cantor que te leve a palma ! Chegado a ser um cantor d'esse feitio, vaha a pena ir um homem por ahi fora apresentar-se ao Papa, e offerecer-se para cantar na sua pre- sença. Se estivesses lá, estavas rico . . .
Mas o Ferreirinha não quiz, e uma
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das rasôes que o moviam era o ser muito pensionada e sujeita a condição de ti- ple junto á santa sede.
— Em que! Mais cantas na Sé, onde és par fixo, do que terias de cantar lá, onde os ha ás dúzias! lhe diziam os outros cantores de voz falsa.
— Não é isso.
— Então o que é? Teres de apresen- tar-te vestido com mais explendôr, ou mesmo de mulher se isso lá fôr moda ?
— Também nâo é isso. — Então o quê? Ferreirinha sorria-se . . .
— O motivo é que se um tiple, em Roma, alguma vez quer receber-se, o Papa não deixa.
— Gomo, receber-se!
— Tomar estado, ter mulher, casar.
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Exactamente ; casar ! Por eu saber como as coisas por lá correm, é que abanei sempre as orelhas ao Vaticano ! Oiçam...
— Oiçamos! diziam os tiples.
— Um collega nosso, dos da Capella Sixtina, enfastiado da vida de solteiro, requereu de uma vez para se casar, ale- gando que apesar da sua gentil voz, se considerava no caso de aspirar ao ma- trimonio; porém o papa, — por signal que era o Benedetto xiv, despachou o requerimento pelo theor seguinte: Si castri meglio!
— Ah! guincharam de indignação os tiples. Fatalidade 1
— Anathema!
— Já vêem! ponderava Ferreirinha. É por isso que eu prefiro Lisboa a Roma!
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E por cá viveu.
Com festas de egreja. procissões e philarmonicas se entretinha pacatamente a população. Havia de vez em quando sua fogueira ahi na cidade; pelo Espirito Santo estabelecia-se feira nas Amorei- ras; em outubro reinava a do Campo Grande, iam ranchos e ranchos de fa- milias em burrinhos do Poço do Borra- tem, comprarem alli panno de linho, briche, nozes, passas, para todo o anno; de tempos a tempos dava-se peça nova na Rua dos Condes ou no Salitre, ia-se para alli chorar um bocado com o Epi- phanio e rir outro bocado com o Lisboa, com o Sargedas, com o Theodorico ; de- pois abriu o theatro de D. Maria, o theatro agrião como se lhe chamava, e guerreou-se isso por ser novidade, e
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não se quererem novidades n'uma terra onde a gente vivera e engordara ao doce e benetico remanso das velharias e do statu quo.
Quando algum dos nossos compatrio- tas, que houvesse sahido do paiz com o destino de seguir estudos no estran- geiro, vohava a Lisboa no fim de annos, esfregava os olhos como fazem os prín- cipes nas magicas ao regressarem de suas maravilhosas viagens e encontra- rem-se de novo na aldeia de onde par- tiram. Só em Paris estavam uns poucos, hoje conhecidos, quasi todos hoje illus- tres. Faltemos de um d'elles, notável entre os maiores. Faltemos do dr. Tho- maz de Carvalho.
Thomaz de Carvalho partiu para Pa- ris em abril de i841, na qualidade de
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pensionista do estado, n*um vapor que fazia o trajecto directamente para o Ha- vre e em que ia com o mesmo destino um cavalheiro, que r/esse tempo frequentava muito a sociedade elegante de Lisboa, Ludgero Avelino, que havia já habitado Paris por espaço de dois annos, e que durante a viagem o foi instruindo nas maravilhas e costumes da moderna Ba- bylonia.
Uma tempestade formidável arrojou-os á Corunha, onde se demoraram por vinte e quatro horas, aproveitando o tempo em visitar a cidade gallega e os seus poucos monumentos. Na noite da grande tem- pestade, enjoado, afílicto, sem nenhuma aprehensão do perigo, sentiu deitar-se junto d'elle no mesmo beliche ura vulto desconhecido, que cheirava a catinga
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muito mais torpemente do que seria para tolerar.
— Que diabo é isto? dizia Tho- niaz.
Era um preto a quem os portuguezes em Paris chamavam o Pae António, e cuja vida accidentada daria para larga memoria . . .
Pae António evidentemente abusou do estado de prostração de Thomaz de Carvalho, mas essa prostração não era ainda assim tão profunda que elle não reagisse e o atirasse do beliche abaixo; a queda foi ouvida do piloto, que n'esse momento entrava na camará, e houve por bem applicar no preto uma correc- ção salutar.
Demoremo-nos um instante com Pae António, para também apresentarmos,
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no quadro a que este livro se propõe, um preto de honiem.
Pae António era originário da Costa d'Africa ; fora vendido no Brazil : evadi- ra-se depois, e levava pela Europa uma vida de bohemio. Percorreu maior nu- mero de terras que o mais intrépido via- jante : apenas se demorava algum tempo n'uma, logo mudava para a outra. Era um philosopho, um artista, um poeta,, um excêntrico, esse filho dos sertões africa- nos; sabia todas as linguas da Europa, o bastante para se fazer entender; servia por consequência de creado e de inter- prete: a bordo ajudava a marinhagem na manobra. Quando pretendia fazer viagem para qualquer ponto do globo, dirigia-se ao porto de mar mais próximo de onde estava, mettia-se a bordo clandestina-
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mente, escondia-se entre a carregação, e mostrava-se somente quando já não era possível pôl-o em terra. Depois com- pensavam-lhe os serviços com a ração da matalotagem.
De vez em quando apparecia em Pa- ris aos estudantes portuguezes que alli se achavam, e desapparecia logo : o que era feito de Pae António ? Pae António durante as desapparições fazia uma via- gem á Califórnia, outra á China, ao Egy- pto, aos Estados Unidos, etc.
Numa noite, o próprio Thomaz de Carvalho o encontrou defronte do thea- tro da Porta S. Martin, lendo com avi- dez um cartaz: contou-lhe então que já n'esse theatro tinha representado de sel- vagem n'uma peça característica: cum- pria-lhe devorar vivo um innocente fran-
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gão e em tanta maneira se desempe- nhava com aceio d'essa operação nau- seosa, que a platéa cabia toda em pal- mas de phrenetico enthusiasmo: estava escriptm^ado a dois francos por noite, concedendo-se-lhe o cadáver do gallina- ceo como subsidio extraordinário.
De uma occasião imaginou apresen- tar-se ao rei Luiz FiHppe como verda- deiro selvagem; alugou num cabeça de pau um cinto vistoso de pennas, um arco dourado e a competente setta, e foi di- reito ás Tulberias. Fingiu saber apenas algumas palavras de francez, dando a entender que desejava fallar á Mages- tade. Luiz Filippe esteve-o examinando com curiosidade e mandou gratifical-o. Reíferiram os jornaes o caso e elogia- ram a generosidade do rei. Pae António
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contava isto como uma das suas maio- res proezas.
Estavam n'esse tempo em Paris Mar- giochi, engenheiro, e hoje director geral do Ministério das Obras Publicas: Ga- Iheiros, que foi ministro com o bispo de Vizeu, o medico Ortigão, Joaquim Júlio Pereira de Carvalho, e outros compatrio- tas nossos, entre os quaes havia três es- tudantes expulsos da Universidade de Coimbra, implicados n'um processo de violência contra um professor. O mais velho d'estes, homem de uma força her- cúlea, é actualmente um dos negocian- tes mais acreditados e respeitados na cidade do Porto : de temperamento con- centrado e pouco expansivo era todavia dotado de muita graça, e dizem que essa graça se tornava infinita quando recebia
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a mesada da família. Foi grande amigo de José Estevam.
O outro era vivo, esperto, petulante, e um pouco poeta nas horas de ócio, que eram, pelos modos, todas. Portou-se como heroe na revolução de junho, cu- rando os feridos na praça da Sorbon- ne, entre as bailas dos insurgentes e as das tropas do general Cavaignac ; mere- ceu ser condecorado com a Legião de Honra.
O terceiro era um moço a quem cus- tou immenso a formar-se. e foi depois morrer obscuro n'uma pobre aldêa do Minho.
O Algarve eslava representado pelo medico Ortigão, e o dr. Estevão. Orti- gão gosava da fama de homem resoluto e destemido, e merecia-a, segundo dizem
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todos. Conta-se que, de uma vez, es- tando a examinar umas graMiras, ex- postas á porta de uma loja, acconteceu passar por ali um olGBicial do exercito francez, que sem maior reparo lhe tocou no braço.
Ortigão disse-lhe :
— Est-ce que vous nij voijez pa$, monsieur?
— En effet, respondeu-lhe o militar com certo modo irónico, je me permets, parfois, d'être myope.
Então, o nosso compatriota com a maior presença de espirito, apresentou- Ihe o seu bilhete de visita, e tornou-lhe :
— Voyez si vous pouvez lire cette carte ?
— Cest bien, monsieur, voicila mienne. No dia immediato bateram-se á pis-
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tola, e Ortigão seria varado no peito pela balia do adversário se uma das testemu- nhas do duello lhe não bradasse:
— MeU-toi en garde!
O projéctil entrou-lhe no braço, pró- ximo da articulação ; fehzmente não teve consequências funestas.
Ainda por esse tempo estiveram em Paris o notável chimico Betamio de Al- meida, Lobo d' Ávila, nosso actual mi- nistro em Madrid, Couceiro, engenheiro, hoje mestre dos principes.
Era numerosa a colónia portugueza, e a brasileira mais considerável ainda, mas não havia sombra de rivalidade en- tre ellas ; viviam na mesma fraternidade como se pertencessem ao mesmo paiz. Entre os da coUonia irmã havia um es- tudante Silva, moço valente, que se ba-
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teu em duello por differentes vezes, e que foi morrer miseravelmente no Brazil. Certo dia recebeu do pae uma lastimosa carta, refferindo-lhe as suas dissenções com o genro, que o ameaçava de morte: pedia-lhe que partisse immediatamente; o pobre Silva obedeceu, e despediu-se dos seus companheiros, com as lagrimas nos olhos, como antevendo a morte fatal que lhe estava reservada. Passado tempo soube-se, que, oito dias depois da sua chegada ao Brazil, fora assassinado pelo cunhado.
Com esses portuguezes e com esses brazileiros viveu Thomaz de Carvalho em França nem sempre desafogadamente, até 1848; e por lá ficaria se nâo fora a revolução de Fevereiro que deu em terra com o throno de Luiz Filippe. x\chava-se
13
m LISBOA DE HONTEM
já por essa occasião formado e exercendo a clinica em S. Deniz. A revolução como que curava subitamente todas as enfer- midades, e durante os três mezes se- ^ guintes não viu um só doente. . . Como já não recebia mesada, havia mais de três annos, não teve remédio senão voltar.
Fallava-se de nova revolução, a de junho e por isso apressou a jornada, chegando a Lisboa nos fins de maio de 1848.
Foi logo visital-o o dr. Magalhães Cou- tinho, acconselhando-o a que se pre- parasse para o primeiro concurso que viesse a abrir-se na escola medico-cirur- gica de Lisboa, auxiliando-o desde logo na vida clinica, tomando-o sempre para seu ajudante nas operações que prati- cava e tornando-llie d'essa maneira me-
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nos sensivel a iniciação sempre penosa para quem começa.
Magalhães Coutinho era então o pri- meiro operador de Lisboa, e decerto o seria ainda se outras vistas e outras preocupações o não tivessem desviado da carreira que havia encetado com tanta fortuna e tamanho explendôr.
Homem erudito, homem de gi^andis- simo talento, conheceu em Thomaz dotes extraordinários e empregou todos os ex- forços para que o talentoso mancebo en- trasse na escola, estimando-o desde logo como coUega, e continuando essa estima com tanta fidelidade e permanência que veiu no fim de muitos annos a deixar- Ihe o logar de director em que Thomaz de Carvalho lhe succedeu.
Quando em 1852 se abriu concurso,
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teve por competidores os facultativos que ainda hoje gosam da maior reputação em Lisboa, e alguns dos quaes eram já muito conceituados por brilhantes provas an- teriores.
Sahiu o primeiro na votação.
E apesar das contestações que pos- teriormente se levantaram, ainda no des- pacho proferido em junho de 1851 foi o primeiro nomeado.
Foi também professor do Instituto Agrícola desde a sua fundação em 7 de janeiro de 1853 até 14 de novembro de 1855 em que se demittiu.
Pela primeira vez em 1850, no café Martinho, vi eu esses quatro homens que reunidos n'um sú se chamam Thomaz de Carvalho, o curioso e raro Tho- maz de Carvalho homem de sciencia,
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Thomaz de Carvalho artista, Thomaz de Carvalho litterato, Thomaz de Carvalho orador. Surprehendeu-me logo aqiielle conversador instruído e vivaz, que soube sempre deslumbrar pela facilidade ele- gante e correcta da sua palavra ima- ginosa, e principalmente pelo espirito critico, pela phylosophia aventurosa, pelo génio gracioso e alegre. A nossa amisade vae tendo já cabellos brancos, e todavia eu não pude nunca calcular onde tem elle achado tempo para saber tudo, e para ler tudo, quanto sabe e tem lido. De tempos a tempos por um artigo notável, por um discurso famoso, tem af- firmado e j ustificado a fama do seu nome ; mas, da maior parte das vezes, tem sobre- tudo brilhado como critico ao ar livre, em dia com tudo que for notável, contando,
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teve por competidores os facultativos que ainda hoje gosam da maior reputação em Lisboa, e alguns dos quaes eram já muito conceituados por brilhantes provas an teriores.
Sahiu o primeiro na votação.
E apesar das contestações que ' teriorraente se levantaram, ainda n( pacho proferido em junho de 18 o primeiro nomeado.
Foi também profes Agricola desde a si janeiro de 1853 1855 em que^
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expondo, dcslamijmdo pela variedade de conhecimentos/ dominando pela es- pcrtesa, que é sobitudo o que n'elle me maravilhou semprimais, uma espertesa que propriamente e deve chamar pro- digiosa.
O traço distincvo do seu espirito, tem sido sempre ( culto, a curiosidade das idéas, a necesdade de as entender, todas, mesmo as qe forem mais oppos- tas á sua maneira o ver: discernir o que haja verdadeiro nllas, inteirar-se do que respeite á sua^rigem, á influencia que exerçam ou óssam exercer nos outros: e concluir ?mpre bem, sempre seguro, á força deienetração e de sa- gacidade.
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nos círculos em que se iá attenção ás cousas do espirito, uma líluencia reco- nhecida; e desde que h muitos annos entrouparaaAcadenii 1. Ilustre homem da sciencia tem sido u\\\ os sócios mais assiduos, intervindo IVm Milementenas dehberações, com a :ii i idade e a efli- cacia que pertencem a uia inteUigencia como é a sua.
Falia com grande ^ • M-rão professo- ral, e ao mesmo teiii|« jande elegân- cia litteraria; a mo* !i de e o brilho do seu talento como 411 fazem lembrar ora a Sicilia ora < Aico; conforme o sentimento que < [-ira, assim elle é por egual notav i estylo puro e simples, no estylo acaemico, ou n'a- quelle em que as \ li les e todos os movimentos impetuu^uyJa alma irrom-
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expondo, deslumbrando pela variedade de conhecimentos, e dominando pela es- pertesa, que é sobretudo o que n'elle me maravilhou sempre mais, uma espertesa que propriamente se deve chamar pro- digiosa.
O traço distinctivo do seu espirito, tem sido sempre o culto, a curiosidade das idéas, a necessidade de as entender, todas, mesmo as que forem mais oppos- tas á sua maneira de ver: discernir o que haja verdadeiro n'ellas, inteirar-se do que respeite á sua origem, á influencia que exerçam ou possam exercer nos outros: e concluir sempre bem, sempre seguro, á força de penetração e de sa- gacidade.
Desde esse tempo tem sempre exer- cido pelo encanto da sua conversação
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nos círculos em que se dá attenção ás cousas do espirito, uma influencia reco- nhecida; e desde que ha muitos annos entrou para a Academia, o illustre homem da sciencia tem sido um dos sócios mais assíduos, intervindo frequentemente nas deUberações, com a auctoridade e a efifi- cacia que pertencem a uma intelligencia como é a sua.
Falia com grande correcção professo- ral, e ao mesmo tempo grande elegân- cia litteraria; a mobilidade e o brilho do seu talento como que fazem lembrar ora a Sicília ora o Attico; conforme o sentimento que o inspira, assim elle é por egual notável no estylo puro e simples, no estylo académico, ou n'a- quelle em que as paixões e todos os movimentos impetuosos da alma írrom-
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peiíi pela indignação, pela ironia, ou pela cólera. É essa mobilidade de ta- lento, que, de uma vez ou de outra, fez com que não fosse perfeitamente en- tendido no verdadeiro ponto de vista em que era para ser considerado, aquillo que propriamente distingue e faz com que seja extraordinário e originalis- simo o homem, que se chama Thomaz de Carvalho ; e do qual não direi mais, n*este livr^, porque a amisade que sem- pre tem existido entre nós não me per- mittiria fallar d"elle senão com um amor enthusiasta, que, n'estas paginas breves e despretenciosas, leria uns ares de ca- turreira, com que o seu fino gosto pode- ria melindrar-se.
Com mil bombas! como dizia o Ga- lamba. Havia de tudo n'aquelle tempo.
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Era pedir por bocca. Traballiava-se por gosto, em todos os géneros, e a valer. Ouvia-se um caso da sociedade do delírio, o da mulher que ia pelo braço do seu ma- rido e á qual um dos terriveis ia dar um beijo, ou o da actriz raptada; mas ouviam- se outras coisas bem dilferenles d'essas, ouvia-se que o Garrett publicava o Arco de SanfAnna; que Alexandre Herculano encetava a Historia de Portugal; que um erudito prendado como poucos da sciencia da antiguidade, Yiale, ia-se ao mais antigo livro de lodo o mundo, abaixo de Moysés, e, sem mais tir'te nem guard'te, entregava-se de cabeça, como diz o povo, a traduzir Homero; que um escriptor do mais completo me- recimento, homem de subido talento, de immensa instrucção, o mais infatigável
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trabalhador sem nunca deixar de ser o espirito mais agi^adavel e menos dado aos azedumes e vindictas em que os ho- mens de lettras tantas vezes se conso- mem a si e aos outros, António Augusto Teixeira de Vasconcellos, fundava um jornal valioso. A llhistração. N'essa II- lustrarão principiou a pubhcar-se o pri- meiro romance portuguez que eu li, Roberto Valença. O romance appareceu sem nome de auctor ; estava impresso desde 1846, mas osaccontecimentospo- liticos que seguiram a revolução de maio d'aquclle anno e a guerra civil em cu- jos trabalhos coubera ao auctor figurar quasi constantemente, haviam embara- çado a continuação; sahia o primeiro volume apenas. Era escripto com uma facilidade, uma graça natural, que lem-
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brava o Gil Braz, o Tom Jones, e dizer isto não me parece que seja dizer pouco, — bagatella! como diz o Figaro no Bar- beiro. Não era aquelle jogo frivolo do espirito em que consistia o grande entre- timento das novellas, era a comedia e a vida, e tudo bem combinado entre o es- criptor e o linguista, tirando o melhor partido da propridade das expressões, artificio da palavra, engenho e variedade da phrase. Pertence a uma épocha mais recente, do que a quadra a que me re- firo n'este livro, a publicação do maior numero das obras de Teixeira de Vas- concellos ; é por isso que só cito agora o Boberto Valença: no volume, que deve seguir-se a este, tratarei demoradamente doeste escriptor, um dos primeiros de Por- tugal.
20i LISBOA DE HOMEM
Esperem lá, eu não fallei haverá dez ou doze paginas do conde de Farrobo ? Fallei, quando citei a opinião d'elle a respeito do tiple Ferreirinha ; e já vêem que, fallando do conde é indispensável fallar das Larangeiras. A quinta das Larangeiras ! Alli iam passear aos do- mingos e ás quintas feiras os felizes que houvessem alcançado bilhete de admis- são ; ainda custava mais ir lá, do que a Gorintho. O theatrinho era um primor; o conde deu a isso o melhor do seu tempo: e do seu gosto, que era grande; a riqueza fez o resto. N'aquellas fes- tas de grande novidade, a elegância foi tudo. Comquanto as peças que alli se representavam, comedias, operas cómi- cas, fossem quasi sempre d'aquellas a que em expressão theatral se costu-
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ma chamar peças á Luiz XV, persona- gens de cabelleira, damas de signal na face, gente empoada e emproada, pela primeira vez em Portugal poude admi- rar-se a gi-aça do dizer natural, a de- clamação nova, sem sair todavia do género de comedia no que ella possa ter mais delicado e fino. Só curiosos distinctos, pessoas de grande educação, poderiam representar taes composições sem se sentirem embaraçadas; tanto mais que não quadram facilmente com aquel- las elegâncias os sentimentos apaixona- dos, por não se ageitarem ao coquetismo de uma épocha, que primava em não tomar nada a serio. O mais leve gesto, que saisse das altas condições do gosto, faria logo rir, com o vermos saltar dos cabellos a nuvem alvacenta dos pós da
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cabelleira. Triumphavam das mil exi- gências d'essas peças os amadores das Larangeiras, pela regularidade de alti- tudes, pela moderação de accionnados, que as pessoas da sociedade sabem con- servar, sem que isso provenha do acanha- mento nem possa confundir-se com elle. Tudo era magnifico ali. Pintaram para esse theatrinho os melhores artistas, os mais caros, os mais illustres, Fonseca e Cinnati. Queria-se, custasse o que cus- tasse, a melhor variedade, a maior ma- gnificência em tudo. Onde o fato devesse figurar ser de veludo, era do melhor ve- ludo: vestidos de setim de cauda com- prida, espadins de grande valor, todos os adereços do mais alto custo. Quando n'alguma peça, como n'um bonito vau- deville que lá deram, Embrassonsnous
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Folleville, a rubrica exigia que se que- brasse louça, dizendo-se na peça que se partia porcelana, era deveras porce- lana que se partia em cacos !
Foi a bizarria, a prodigalidade luxuo- sa, o ultimo respirar da grande elegân- cia e fausto da fidalguia antiga. Desde os bordados a ouro dos fatos até o es- plendor dos lustres, espalhando ondas de luz, riquissimo, primoroso, tudo: di- vertimentos de principe, festas reaes.
Tudo quanto era notável entrou ali, ou foi convidado a lá ir. Gosava, por exemplo, de grande celebridade, um mu- sico, nome memorável nos annaes da arte, desde a opera Nina, pérola da sua Gorôa, Coppola, que viera por acaso a Lisboa. Estava cheia a Itália do nome d'elle ; não apparecera depois de Bellini
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quem seguisse com tanta doçura e tanta alma as tradições da suave e terna ins- piração singela do auetor da Somnam- bida, e os famosos Mercadante, Paccini, Appoloni, Petrella, Rieci, andavam de ouvido alerta com os applausos ruidosos e enthusiasticos que suscitava, por toda a 'parte onde era cantada, essa musica de- liciosa, ora melancólica, ora alegre, so- nhadora, vaga, toda encanto e ideal! . . . Disse que o maestro viera a Lisboa por acaso? Enganei-me. Convidára-o o conde de Farrobo; e esse musico de tão superior talento que dirigiu por muito tempo o theatro das Laranjeiras, accei- tando o desejo que o conde lhe mostrou, e trocando os triumphos de Milão e Flo- rença pela existência de compositor tou- riste, por cá se deixou ficar. Por signal
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que esse capricho lhe foi fatal de algum modo: quando o conde de Farrobo viu empallidecer a sua estrella, principiou também para Goppola a noite escura dos gloriosos ao cairem da fortuna e da es- timação da moda; fechou o iheatro das Laranjeiras, e, ao fim de pouco tempo, ardeu quasi todo esse templo do gosto, dos primores da vida, do folgar delicado e nobre.
Alli deu o conde entre outros sempre explendidos um grande sarau á rainha, a senhora D. Maria ii, e á corte.
Por signal que ficou memorável um dos ensaios para o espectáculo d'essa re- cita. Rebentou uma trovoada medonha, na occasião de começar 'a ensaiar-se um dos actos da peça: as senhoras prin cipiaram por gritar, depois perderam os
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sentidos : os homens não sabiam o que fizessem á sua vida: houve um pânico geral. . . Pancadas de agua sobre panca- das de agua. . . Gahiu um rayo a poucos passos do theatro ... Os curiosos perde- ram com o suslo a memoria e ficaram sem saber os papeis e sem saberem de si. . . Os omnibus que trouxeram os mú- sicos cahiram pelo caminho. . .
Fallou-se d'isso em Lisboa durante mezes; mais: durante annos. Se ainda fosse moda agora, como era n'aquelle tempo, publicarem os jornaes uns artigos de variedades intitulados Commemora- ções, escriptos nem mais nem menos do que por Cascaes, Mendes Leal, e Silva TuUio que foi o que melhor mereceu a primazia n'esses trabalhos, mercê da es- crupulosa investigação e esmerada peri-
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cia que revelavam e da vernaculidade de linguagem em que eram escriptos — se ainda agora se fizessem Commemo- rações, seria falta imperdoável deixar de commemorar aquelle ensaio celebre.
Como eram bem feitos, como eram bem pensados e bem dirigidos alguns jornaes litterarios d'esse tempo, o Pa- norama, a Revista Universal Lisbonense !
Dizia Manuel Passos:
— Se acabarem a Revista e o Fano- rama, o melhor será não haver senão um jornal, o que publicar os actos e manifestos do governo; porque esse nin- guém o lê.
E acabaram.
As allenções principiaram a fugir para a imprensa politica. O que mais captivava era exactamente a circumstan-
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cia de ainda não se perceber bem o di- reito da imprensa para com o governo e para com o publico. Theoricos e prá- ticos davam n'esse ponto grandes con- certos, em que se desafinava muito.
Entendiam uns que, como principio^ a imprensa não tinha direito algum se- não o que se lhe concedesse, e que os jornalistas usurpavam e exerciam sem mandato um poder exorbitante, que fazia com que, pelo facto de ser imprensa, tivesse mais peso nos negócios públicos do que as deliberações das camarás.
Isto, á primeira vista, não parecia ló- gico, e lembrava-se uma pessoa, mesmo sem querer, do tal dito de que o único jornal necessário era o Diário do Go- verno.
Mas, pensava um ou outro, e pen-
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sava' bem, que sendo a imprensa um poder irregular, tinha uma grande prenda a seu favor, que vinha a ser, a de qual- quer, isto é toda a gente, poder entrar n'ella quando quizesse. Yia-se que os jornaes, em caso definitivo, não expri- miam senão a opinião publica tomada nas suas infinitas divisões, e que o go- verno devia ter interesse em consultar todos os dias essa espécie de thermo- metro das paixões politicas!
Pensou-se que, num paiz, como o nosso, em que a policia não teve nunca significação, e em que a cada passo se encontravam por Lisboa uns patetas, ou uns pobres diabos, que campavam umas vezes de infelizes, outras até de janotas, e de quem se dizia cá bocca cheia que viviam pelos cofres do governo civil, sem
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ninguém fazer caso d'elles, nem para os evitar, nem para se deixar surpreen- der, a imprensa poderia fazer, indepen- dente, o que a policia sendo paga não fez nunca, insinuar o governo acerca do estado dos espiritos, e dos planos dos partidos. A liberdade, a justiça e a ra- zão, fariam depois balança e equilibrio de tudo isso.
O resultado foi simplesmente ficarmos da força dos hebreus no que respeitou a intistuições: os que eram do regimen dos Patriarchas, abominaram os do re- gimen dos Juizes ; os que eram do regi- men dos reis não podiam ver os dos grandes Pontifices . . .
A palavra para tudo, era o Governo, Como se hade fazer isto? O governo. Quem tem a culpa d'aquillo? O governo.
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O pobre desditoso governo era um^ en- tidade vaga, que não punha de manhã o chapéu na cabeça para ir tratar da sua vida, e tinha de responder pelos desacertos dos que tratavam só de si. Foi durante um pouco de tempo uma infer- neira. Até os ferrolhos do Castello de S. Jorge e os do Limoeiro pensaram tão pouco nos seus interesses, que cor- riam e abriam-se quando menos se espe- rava . . .
A rua tere também a sua épocha de festa, — mercê dos batalhões nacionaes, bataréos, como foi costume chamar-lhes.
Que bonita tropa !
Poderiam haver-se formado destaca- mentos magnificos de coronéis e tenen- tes-coroneis!
Eram tantos os officiaes, que d'el-
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les se fez um regimento : o batalhão sa- grado.
O povo chamava-lhe o batalhão dos panças. Maneiras de dizer. Motivava isso o ser composto, em grande parte, de pra- ças em que as proporções abdominaes não avultavam menos do que a impor- tância de serviços. Eram oíBciaes, to- dos elles, dos antigos batalhões que em 1833, 1836, etc, haviam formado os batalhões moveis e milicia nacional.
Na cabeça uns zabumbas em guiza de barretinas; por armamento umas es- pingardinhas pouco diíTerentes das que são destinadas a desenvolver o espirito bellico da infância.
Além d'este regimento havia os dois moveis de atiradores; conhecido o pri- meiro por batalhão do Falcão, por ser
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seu commandante um antigo ministro da marinha, Joaquim José Falcão : chama- va-se-lhe também do arsenal; era com- posto na sua maioria de empregados do ministério da marinha: aspecto beUico: officiaes de voz estridente no commando, lestos nas evoluções e nas manobras. Magnificas illuminações e grandes sere- natas á porta do quartel. O segundo movei era conhecido por batalhão do Joãosinho, ou da pescada, por ser o seu commandente o chefe da repartição do pescado: era tão fácil ser admiltido nelle como inspirar ciúmes a Nemorino: « Sa- reste tu geloso? — Si, lo sono! — Di qui? — Di tutti?» Ia para lá quem queria. O commandante aproveitou o tirocinio que em 33 havia tido na milícia, e levou o corpo a um estado de instrucção, que
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foi fallado; dizia-se que rivalisava com os mais dextros de linha; era tudo tra- tado militarmente: zás, traz.
Havia o batalhão das obras publicas, vulgo da Caliça, composto de operários das obras publicas; muito numeroso; inspirando moderada confiança. D'este corpo era a guarda do Limoeiro, quando se abriram aquellas portas, e sahiram os presos politicos alli detidos.
Tinhamos o batalhão da Carta com a sua companhia de ricos proprietários do Algarve, e não nos esqueça registrar que n'esse foi capiíão o sr. Mendes Leal. Ti- nhamos mais a artilhcria nacional, rival em classificação do segundo movei; corria o boato de que acobertava sob o uniforme muitos fadistas de Alfama e Bairro Alto: o aspecto em todo o caso, era marcial.
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Tínhamos ainda — o que não tínha- mos nós? — tínhamos o Corpo Commer- ci-al; dois batalhões: negociantes de todas as cathegorias e espécies, boa mu- sica, correias de pohmento com emble- mas de prata; o encanto das ruas da baixa, quando davam guardas para a principal ou iam em formatura á missa de S. Domingos.
Os dois corpos que continham o bei- jinho da sociedade lisbonense eram o Esquadrão nacional, commandado pelo conde de Farrobo e o Batalhão de empregados públicos, commandado pelo conde de S. Payo. Para assentar praça no Esquadrão era necessário possuir ca- vallo próprio. Era o corpo dos marialvas da épocha: mais de uma vez as patru- lhas, que policiavam a cidade, foram en-
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centradas em flagrante colloquio amoroso, ou escoltando carroagens m} steriosas em que se suspeitava que ia a cómica esta, ou a bailarina aquella. . . Fizeram grande impressão nas senhoras, estes dois ba- talhões; deve-se-lhes em grande parte o prestigio, a sympathia pela farda, que foi durante annos um dos grandes se- gredos de tentação lisbonense . . .
— Um alferes!
— Um tenente!
— Um capitão. . . Ó céus! como en- tão era costume dizer. O céus! . . .
O batalhão de empregados públicos era formado da multidão que povoa as secretarias e severas repartições do Es- tado. Bem composto e fornecido de pra- ças. Havia uma companhia destinada ao pittoresco: chaaiavam-lhe áo pau e cor-
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da; formava-a o pessoal da companhia braçal da alfandega. Os oíBciaes e pra- ças do batalhão, que eram classificados os da agua de colónia, fizeram cara á ad- missão d'essa gente no corpo que tinha por soldados muitos commendadores e conselheiros. A final resolveu-se formar do pessoal da alfandega uma compa- nhia á parte; e lá se introduziu uma, commandada por officiaes da guarda das alfandegas. Era um batalhão um pouco á moda de Gerolstein. Disciplina de phanthasia: um trecho de opera para gritar alerta; saindo do quartel em seges para a guarda, das Francesinhas, pela semana-santa. Patrulhavam na perfei- ção: faziam a policia, que era um pa- raíso.
Conta-se que de uma occasião ou de
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outra, a ronda superior fazendo o seu serviço, fora das horas do costume, en- controu o sentinella em deshabillé, fu- mando o seu charuto, repotreado n'uma Cadeira de braços, e, ao mesmo tempo que guardava o edifício do Estado, en- tretendo o espirito com a leitura de algum romance de Alexandre Dumas. Pelas noites o corpo da guarda torna- va-se em sala de concertos: tocava-se, cantava-se, jogava-se, e as paredes res- tauradas da casa da tarimba echoavam duettos de flauta e rebeca, árias de Ros- sini, walsas de Strauss e de um compa- triota nosso, vocação graciosa, Silvestre Pereira, Silvestre das walsas lhe chama- vam, tocadas ali a violoncello, cornetim e outros instrumentos. Então, sob a far- deta do soldado, se denunciava o cava-
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Iheiro, o dandy, o dUettante, o homem das salas. Referiam os boatos populares que muitas vezes um moço de fretes en- vergando o capote de policia e sobra- çando as correias, fizera o serviço da sentinella, a dois tostões por cabeça, que lhe grangeavam uma boa propina pelo serviço da noite e o disfrute dos descantes. •Os moços de fretes attingiram n'essa quadra porporções extraordinárias. En- costados á esquina, de sacco no braço e barrete aprumado, deixando-lhe de fora a orelha para ouvir logo o psichiu de quem os chamava, contemplavam sor- rindo as glorias militares do tempo, e sorriam-se com malicia para os misté- rios de que só elles tinham a chave, fu- mando, descuidosos da pátria, o seu cigarro ao sol.
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Conheciam tudo.
Conheciam todos.
Viviam na rua e da rua.
Possuiam freguezes de carta por dia, n'este batalhão, ou n'aquelle. Em le- vando a missiva, vohavam logo para a esquina, a esperar que lhes trouxessem outra.
Eram homens para casos formidan- dos. Pau para toda a obra. Em se que- rendo, atormentavam de manha, meze& a fio, acordando-o á força de toque de campainha, algum devedor rebelde; iam na pista, um dia inteiro, de uma familia que andasse a visitar as egrejas em quinta feira santa, tinham arte de a se- guir na sombra, de ouvir dois officios e um sermão, de não perderem o faro na confusão e na balbúrdia, e de irem gen-
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tilmenle á meia noite e um quarto acom- panhál-a em distancia até o domicilio — só para dizerem depois a um ca- valheiro, que lli'o incumbira, onde fi- cava a vivenda d'aquella que mais tarde poderia vir a dar-lhe a mão de esposa.
Vida nómada, vida airada e leve; se- gurar cavallos no Terreiro do Paço; dei- tar ramos, e atirar das torrinhas de boca versos de cores ás bailarinas; ir buscar o jantar para algum castellinlio miste- rioso, n'uma rua isolada, onde, sem nin- guém o sonhar, alguma grande senhora fosse ás vezes passar o dia longe do seu palácio, na penumbra encantada dos amantes. Quando Flávio queria dar-se o praser de ver em sua honra voarem pombinhos em recita de beneficio, eram
lo
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elles que iam ás varandas despedir es- sas ternas aves — com tal meiguice ás vezes, que lhes atavam um cordel á aza para nâo voarem de todo e reservarem uma ao menos para o arroz da ceia!
Tinham um typo geral ; cahia-lhes um pouco para cima dos olhos a melena clássica dos pensadores; duas farripas á maneira dos Girardin e dos Cobden; ar profundo e firme; nariz abundante, o na- riz dos fortes; mostrando mais a mão es- querda do que a direita, como suc(5ede por coquetismo natural aos artistas e aos poetas, que nunca põem em evidencia a mão que trabalha, a mão dos prodí- gios, a mão gloriosa; corpo á fresca, em mangas de camisa ; calça larga e curt-a, a calça da intrepidez e da agilidade, — sapato grosso e sólido — e, ao meio da
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cintura — in médio virtus — a apparecer a orelha de um suspensório, o suspen- sório dos estadistas, o suspensório dos prudentes e dos firmes!
Eram os confidentes da vida, os porta- voz dos negócios, os correios do trato social. A que poderiam elles aspirar mais nobre do que serem úteis aos seus conterrâneos, n'esses tempos arriscados, tempos de guerra, vencerem o tempo e o espaço, resolverem as coisas, serem o telegrapho ambulante?
Altivos de mais para pegarem no bar- ril e venderem agua como os gallegos seus competidores e seus rivaes, olha- vam-os sem ódio mas com desdém, e não lhes invejavam siquer a sobriedade, elles que eram n'isso o contrario dos heroes de Tuy e de Redondella, amantes
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do copo de bom vinho que lhes offere- ciam na guarda, onde levassem alguma boa nova. amantes até da herva-doco no armazém que ficasse mais perto, onde estabeleciam escriptorio, emquanto aqaella paixão rendesse, olhando para o que ia, e sorrindo-se, n'uma bea- titude de cassoistas, de toda aquella barafunda de pseudo-guerra, e pseudo- amor ...
O primeiro cuidado dos soldados da guarda era arranjar namoro de visi- nha. que lhe proporcionasse colloquio nocturno e lhes fizesse passar agradavel- mente os quartos da sentinella da noite. As bellas mostravam-se gi-andemente sensíveis a essas attenções. Ao largar da agulha não se ouvia de janella para janella senão conversar a respeito d'es-
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tes guerreiros e discutir como e que deve ser o verdadeiro militar:
— Nem alto nem baixo, nem gordo nem magro, mão delgada, pé pequeno, cintura fina . . . E o ideal, dizia uma.
— E a barba?
— Só bigode, bigode comprido, fino, engraçado. As suissas fazem a cara larga, e a pêra cahiu no dominio dos cabos de policia! Bigode, bigode só. Di- zer uma pessoa o porque, é difficil: mas sâo mãos perdidas! Gosla-se do bigode pelo bigode mesmo, e por parecer inse- parável do militar como o cavallo do cavalleiro !
— Bigode e pêra, também é bem bo- nito! suspirava outra. Ainda torna mais completa a physionomia de um alferes!
— Não posso ouvir tal. A pêra ou é
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bisonha, ou é presumida. Bigode é que é o caso ; principalraente se nunca foi cor- tado. É o que enfeita mais a cara de um homem. Militar sem bigode é como uma vassoira sem barbas! Mas, que o não aparem. Bigode aparado não tem caracter; é como o rabo dos cães de ratos: não se pode apreciar.
E os pobres homens, coitados, não eram senhores das barbas; uma pedia mosca, outra queria á ingleza, outra a barba toda á porta-machado. Faziam os barbeiros doidos. Conforme os na- moros, assim lhes andava a cara.
Algumas bellas levavam as noites em gargarejo permanente, e passavam de namorado á proporção que a sentinella era rendida.
Outras deleitavam-os, para lhes tor-
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nar a sentinella menos cruel, tocando no piano, de janella aberta, algumas me- lodias ternas, e por muitas vezes lhes jun- tavam em voz appiada a letra de varias modinhas, correspondência lyrica entre a tocadora e o Marte amoroso, que de espingarda ao hombro, esperava a hora feliz do render da guarda para envergar a sobre casaca, empunhar a chibatinha, e ir rondar a conquista que o serviço mi- litar lhe deparara.
O sr. Marquez de Fronteira era o commandante geral dos batalhões nacio- naes. O estado maior era brilhantissimo. A maior campanha foi a de perma- nência de cinco dias nas linhas, quando as forças, revoltadas, da junta do Porto, pretenderam atacar a capital, o que não teve logar, pelo revez de Torres Vedras.
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Durante a estada nas linhas, os no- mes dos caudilhos da revolução, que eram o conde das Antas, então ex-ge- neral Xavier e o visconde (depois mar- quez de Sá da Bandeira, destituído do seu titulo e designado nos papeis offi- ciaes por ex-general Sá Nogueira.) eram ouvidos com terror pela milicia da capi- tal; mais de uma cabelleira, frizada pelo Baron, poderia arripiar-se debaixo do bonnet de policia, ao ouvir os pirns dos canhões, que feriam tiros durante o es- tacionamento das forças em Setúbal e Alto do Viso: varias pernas poderiam vergar no serviço de descoberta, quando se imaginava que as forças patuléas ap- parecessem em frente das linhas: mas nem as pernas vergaram, nem tremeram as cabelleiras. Até., por maior galanteria,
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as forças milicianas desabafaram os seus receios em gaizoles da ração, que o es- tado fornecia, como se fosse a tropa em campanha; e D. Pedro Brito do Rio, então quartel-mestre do batalhão de em- pregados públicos, viu-se em mil emba- raços na distribuição do pão de munição e aguardente, ás forças do seu corpo, que aguardavam a opportunidade para troca- rem tudo isso a dinheiro, e voltarem-se para uns rancheiros especiaes, que forne- ciam ranchos de boa sociedade, em que a canja de gaUinha e o prezunto formavam a base dos almoços e jantares das ele- gantes praças do batalhão da a(/ua de colónia.
Lisboa admjrou, recreando-se, todos esses gentis militares; gostou d*elles como a Grã-Duqueza, da famosa opera,
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que tinha de sair ao inundo tantos annos depois de tudo isso. Estimava a grã-duqueza a farda deslumbrante, os uniformes multicores, os cavallos tro- tando a compasso, a charanga harmonio- sa, as bayonetas que luzem ao sol, e o brilho das espadas por entre a poeira das ruas: e também a côr, o movimento, o ruido, a musica e a farda seduziram Lisboa. O que poderia apaixonal-a de todo, era se tudo isso houvesse ido um boccadinho além do pittoresco: por um triz a valentia dos batalhões esteve a ponto de ser experimentada n'essa qua- dra memoranda; e algumas provas de valor collectivo d'cssa milícia deixaram perceber, com agrado geral, que, em oc- casião opportuna, poderia ter-se con- fiança nas forças que a compunham.
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N'ama parada de toda a milícia, em Campo de Ouri(jue, quando a rainha a sr/ D. Maria ii, se tinha postado junto ao quartel do 16 para receber a conti- nência, um doido arrancou uma das balizas, e com a bandeirola e o ferro que a segurava, ao collo, foi-se direito ao grupo do estado maior do comman- dante geral e largou a dar bordoada de crear bicho nos ajudantes de ordens. Os ajudantes surprehendidos pelo arrojo d'aquelle allucinado imaginavam uma revolta de que aquelle valeroso era o chefe: os cavallos espantados pela ban- deira vermelha voltaram-lhe as garupas e exposeram os cavalleiros á pancadaria doida que não cessara. O conde de S. Payo, que com o seu cavallo branco, voara da frente do batalhão que commandava
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em soccorro do estado maior, deveu ao ter-se impinado o animal, o exforço de se abraçar ao pescoço do casallo; e por acaso roçou com a espada pela cabeça do agressor, o qual, atordoado, caiu, e, amarrado, foi levado logo para o hospi- tal com instante recommendação de que se diligenciasse fazel-o revelar o proje- cto da revolta.
A malicia humana ia a querer surrir, como se fora caso cómico, d'aquellas fi- leiras de três ou quatro mil bravos, pos- tados ali em parada, e atacados por um maluco, que com uma vara tão frágil affrontou o valoroso exercito miliciano, tozando o seu general e estado maior, como se fora aquella a mais arriscada campanha de tada a existência dos ba- talhões nacionaes. Entretanto viu-se que
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era isso um caso serio, não pelo succes- so, mas por se passar com um doido; os doidos na Rússia são sagrados: em Portugal são temidos.
Quando os batalhões guarneciam as linhas, abriu o céu as suas cataractas sobre os valentes, que o destino assim expunha ao fogo e á agua: mas o valor das aguerridas fileiras não se derreteu com as chuvas torrenciaes, que cairam sobre os espinhaços d'esses guerreiros; e o sr. D. Fernando, então generalissimo de todo o exercito do paiz, ajudou a conservar vivo e prompto o valor d'a- quella tropa, fazendo visitas amiudadas aos diversos quartéis e distribuindo ci- garros do contracto, chamados pelles de tigi'e, pelos soldados em quem o frio da agua que lhes repassava o capote não
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tivera poder senão para originar leves defluxos.
Ia a romper o grande diabo, e a coisa estava por um triz a estallar que havia de fazer horror, tanto mais que os ci- garros reaes e as palavras animadoras do régio general incutiam nos ânimos resoluções devastadoras; mas, n'isto, chegou a noticia de que em Torres Ve- dras se tinha tornado inútil o reforço bellico da milicia nacional da capital.
As musicas tocaram então, e chega- vam a parecer alegres: a marcha dos pelotões foi regular, e pode dizer-se que apressada, quando das linhas os corpos regressaram para casa: mas convinha observar melhor, e ver-se-hia que exis- tia in petto a saudade d'esses tempos de guerra, não diremos propriamente
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gloriosos, nem também diremos aprasi- veis, mas brilhantes! . . .
Um maganão, um innovador, pertur- bou de varias vezes com o ridículo os pensamentos e lances mais sisudos e so- lemnes d"esses tempos . . . Chamava-se Bernardino Martins, e o seu jornal, en- graçadissimo, tinha por titulo Supple- mento Burlesco.
A caricatura tentou viver, mas não poude; tratava sempre das mesmas pes- soas, dava sempre as mesmas figuras; a rainha, D. Fernando, o conde de Tho- mar; a única variedade consistia nas caras do Saldanha, cpie appareceu de- senhado de mil maneiras. A simpathia que o duque inspirava resistia a isso; depois, mesmo em caricatura, elle nunca podia ficar feio, sob pena de não dar
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idéa alguma do personagem e d'aquella rara esbeltesa, feições plácidas, boca in- sinuante, grande ar. porte real.
O Martins do Burlesco era um grande elegante ; conhecia a vida pelo lado de- leitoso e fácil: tinha n'esse tempo o duplo segredo do l;>em estar, saúde e dinheiro. Formava ao lado do marquez de Niza, de Luiz Mendes deVasconcel- los, de D. Álvaro; subia e descia a seu gosto as largas escadarias dos palácios; chegava de França, onde folgara os pri- meiros dias da sua mocidade nos salões Saint-Germain ; tinha muitas relações; regalava-se de ser propheta na sua terra, a mais diffieil das habilidades de um homem de espirito; e conservou por muito tempo as attenções presas aos seus artigos do Supplemento.
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Esse jornal fez propriamente o que se chama épocha. No dia em que se pu- blicava, nâo se pensava n'outra coisa, não se fallava senão cFisso. Gostavam de o ler moços e velhos.
Porque n'esse tempo havia velhos.
Isso acabou.
Já não ha.
Eram da sua edade, no que recla- masse a dignidade, que os annos confe- rem; mas eram alegres, amáveis, joviaes, e faziam brilhar com graça os cabellos brancos ...
Gostava-se d'isso; respeitava-se isso. Pela rua quando se encontrava o con- selheiro Bayardo, Ildefonso Leopoldo Bayardo, ou Bayard. que era commen- dador da Conceição, cavalleiro deChris- to, grã cruz da Rosa e de Carlos iii,
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quando tudo isso ainda eram prendas de estimação, e ministro plenipotenciá- rio em disponibilidade, toda a gente lhe tirava o chapéu, e não era por elle ser isto tudo, era por ser velho. Se pode haver graça e coquetismo na velhice, aquelle era o coquetismo e a graça do velho. O cabello alvejava ao longe, o vestuário era sempre esmerado, como convém a um homem fino, que deve cuidar de si tenha que annos tiver, para não se parecer com esses porcalhões modernos, que acham tafularia lavar-se e escovar-se pouco. Chamava-se-lhe o verdadeiro homem de gravata lavada, porque andava de gravata branca. Usava casaco comprido, á Palmerston, calça estreita, chapéu napoleonnico. Era de uma urbanidade, de uma cortesia primo-
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rosa. Quando em 1856 um criado o as- sassinou, Lisboa teve verdadeira magoa: como que disse adeus ao ultimo velho !
— Vens tão branco! dizia um d'estes velhos peralvilhos de hoje, que se tin- gem e burnem, a António da Cunha Sotto Maior, quando elle veiu a Lisboa com licença.
— Venho de longe! respondeu elle.
— Sim, bem sei. Tens estado em Di- namarca. É talvez má terra, ou, pelo menos, não te dás bem! Embranqueceste de todo! . . .
— Não, não, meu amigo, retrucou o excêntrico diplomata. Isto lá é moda. Tinge-se um homem de branco por ele- gância, quando chega a ser velho ; exa- ctamente como em Lisboa se pintam para parecer terem o cabello preto !
244 LISBOA DE HONTEM
O povo que se ri dos falsos elegantes, e dos moços fingidos, tinha invencivel simpathia por esses typos de grande se- nhor. A popularidade é uma coisa muito mais rara do que se pensa, e isso nasce principalmente de que não é fácil illu- dil-a para a captar. A popularidade alcança-se por qualquer coisa, mas é preciso que essa coisa seja a valer. Do mesmo modo que o luxo é santo, porque auxilia o povo fazendo-o ganhar e viver, assim a elegância o seduz por ser um ideal para elle. Deus te livre, diz o ára- be, de alcançares o teu ideal; a elegân- cia nâo tem siquer esse perigo para o povo, elle não pensa em a alcançar, mas deleita-se em admiral-a. É assim que o duque de Loulé, que era a natureza me- nos própria para aspirar á popularidade,
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porque não tinha a vivacidade, a acção, a palavra, o tom, o rasgo que attrae o povo, ainda apesar d' isso lhe impunha pela distincção especialissima que res- pirava n elle.
De uma occasião na sala do risco, el-rei D. Pedro v passeava com o duque de Loulé, conversando; o povo na ga- leria, entretinha-se em olhar para elles. Era um rei muito estimado, e que tinha sobre todas a virtude de maior apreço para portuguezes, a modéstia; dir-se-hia que pedia desculpa á gente de ser rei. O duque dava, como de rasão, a direita ao monarcha, e apressava ou retardava o passo conforme o andar da magestade ia indicando; n'isto, el-rei passa-lhe o braço por cima do hombro.
O duque parou, esquivou-se branda-
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mente, e, virando-se para el-rei, fez-lhe uma vénia.
Depois continuaram a passear.
D'alli a pouco, o senhor D. Pedro v tornou a esquecer-se, ou quiz lembrar- se, Deus sabe qual das rasões houve, e tornou a passar-lhe a mão pelo hombro.
O duque tornou a parar, esquivou-se de novo brandamente, e fez nova vénia a el-rei como se lhe dissesse:
— Meu senhor, eu não sou rei, nós não somos iguaes, e, agradecendo respei- tosamente esse favor, ao mesmo tempo indico a Vossa Magestade que tal fami- haridade não augmentava a benevolência de el-rei e diminuia o acerto e bom gosto da minha modéstia e do meu orgulho.
O povo entendeu isto d'essa maneira, e quando d duque de Loulé sahiu do
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Arsenal toda a gente fallava do caso, e se descobria de tão boa vontade para saudar o bom rei como o bom juiso do seu ministro.
Que maior elegância, por outra ma- neira, e de outro género, do que, por exemplo, a elegância de José Eetevão!
Original.
Original em tudo!
É caso até para se dizer que mais fá- cil seria contar as estrellas do ceu, — dinumeras stellas si potes ... — do que as innumeraveis revelações da originali- dade doesse homem.
Nascera fadado para fallar ao povo. O povo quer ter a vista entretida por imagens sensiveis e cores variadas : não differença bem isso a que os francezes chamam nuances: quer que lhe fallem
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alto; Dão tem o ouvido ageitado a fmu- ras delicadas; quer DiovimeDto, calor, fraDquesa: discursos em que circule graDde iuteusidade de vida. As mimosas delicadesas do beui pensar e bem dizer tocaui-lhe pouco. Ha homens fadados para morrerem como heroes, ou al- cançarem 05 primeiros postos: a tri- buna não podia dar a José Estevam senão um destino d*essa ordem; e o povo queria-!he tanto mais quanto elle se mostrou sempre desprendido de am- bições pessoaes e das torpes especu- lações da politica. Os discursos d'elle tiazidos para o Diário do Governo, eram como as reducçõos de operas para o piano, que empalidecem o original. As idéas que elle expendia eram sempre destinadas a ruidosas victorias; mas a
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coinmoção produzida era de tal ordem, que não poderia prolongar-se muito. Nunca se perde o que se semear no campo do progresso, e quando se foi grande homem, e homem de sempre trabalhar para o bem. como elle, at- tingiu-se o fim: pode haver alcançado pouco; mas a lembrança, mas o exem- plo ficam: e sempre é bom isso mesmo, pór peores que vão os tempos; sempre é bom, exactamente por isso, por irem maus. Pode a gente ir de um pólo para o outro, de cá para lá e de lá para cá, ver homens que furem a barriga a si próprios, que comam carne crua, que atravessem o nariz com uma agulha de colchão, que pintem o corpo, que façam mil coisas qual d'ellas mais rara, o que lhe ha de custar a ver seja onde for.
250 LISBOA DE HONTEM
quanto mais em terra de compadres onde quasi ninguém é pelo que vale senão pela ajuda que lhe dão, é a espé- cie verdadeiramente rara que se chama «homens de principios!» Quem viu José Estevam, viu isso.
Não ha nada mais fugitivo do que um discurso, ou um artigo de jornal; passa, como passa a actualidade: apa- ga-se o discurso de hoje, e o artigo de hoje, ao apparecerem os de amanhã. A imprensa do tempo de José Estevam foi fecunda em trechos, que pareciam desa- fiar a possibilidade de um esquecimento rápido: e todavia quasi todos mergulha- ram n'elle. Os inimigos do grande orador tentaram propalar a opinião de que elle, fallando bem, escrevia mal. Estava-se na epocha dos triumphos jornalisticos de
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Sampaio, e a popularidade do celebre polemista absorvia a que podessem al- cançar os artigos de José Estevam. Não se consente em Portugal que o mesmo homem possa ser superior em mais de um género; enclausurâmol-o na espe- cialidade em que obteve os primeiros triumphos, e considerâmol-o perdido em saindo d'ella, prevendo queda infallivel por mais lesto que elle corra; prega-se- Ihe com um alfinete o competente let- treiro, depois de o cathalogar, e fica prompto: nunca mais pode sair d'alli. Fallava bem ; estava dito tudo ; não po- deria fazer mais nada. A ephemera duração das folhas volantes, e esse preconceito invencível, condemnaram a uma apparição estéril alguns dos seus artigos, que seria útil que houvessem
232 LISBOA DE HOMEM
durado: apesar de passageira, a im- pressão produzida por elles, deixava rasticios ás vezes.
A quadra era fecunda. Começava uma democracia de trabalho e de produção, e a base d'essa sociedade nova estava no trabalho e na produção pessoal. José Estevão incitava o povo ao culto e amor das idéas, e incutia nos ânimos o ódio ás trevas, á inércia, e á indiííerença. E depois, era um artista; sincero, afíectuo- 80, sublime: attraia, levava tudo, em querendo, atraz de si.
Quando conversava, calavam-se todos; elle ás vezes não acabava bem as phra- ses, e parecia não se importar com ellas antes mesmo de as terminar, emquanto o assumpto lhe não interessava; gra- dualmente ia aquecendo: a voz era forte
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LISBOA DEHOxNTEM 253
e dominadora, elle accentuava certas sil- labas, certas palavras com uma pronun- cia um pouco especial, que tantos imi- tadores teve depois: dizia por exemplo — poesia, grave, demoradamente ... A phisionomia era verdadeiramente bella : uma pallidez insinuante, nariz fino, ex- pressivo, olhos de um tamanho variável, lúcidos, persuasivos, cabellos fluctuando á mercê do vento e do acaso, finos, on- deados, bocca formosa, sympathica, pro- mettedora, — bocca de orador!
Tinha bons estudos, e a sua ins- trução variada dava novo encanto aos dotes da sua eloquência, e o cunho par- ticular de vivacidade e de interesse que só se alcança, que, pelo menos, só se aguenta, por um fundo abundante de conhecimentos alliado a um talento na-
254 LISBOA DE H ONTEM
tural; mas o seu principal condão, era a espontaneidade, a expansão, a scen- telha do génio !
Nas mais leves circumstancias da vida familiar, era sempre original, era sem- pre elle. Estava, por exemplo, na sua casa, a jantar; o creado traz para a mesa o cosido; José Estevão, que gos- tava muito de toucinho, procura o tou- cinho no prato e não o acha :
— Que é do toucinho?
O creado calla-se.
— Você não ouve, ó António? diz para o creado. Onde está o toucinho?
— Esqueceu comprar mais; o cosi- nheiro disse-me que havia só um boca- dito, e queria deital-o na panella; mas, como era poucochinho, achámos que mais valia não deitar nenhum.
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— Acharam isso . . .?
— -Achámos, sr. José Estevão. José Estevão meteu a mão na algi- beira, e tirou um cruzado novo. — Toma lá.
— Para que é isto, sr. José Estevão?
— Doze vinténs para ti, e doze vin- téns para o cosinheiro : duas bestas as- sim são raras !
Perdoava-se-lhe tudo, pela sinceri- dade de que elle dava prova a cada ins- tante, e porque se estava habituado a vêr n'elle uma creatura como que so- brenatural.
Elle ia todas as noites a casa de D. Pedro de Brito do Rio; mais cedo, mais tarde, depois do Grémio, depois do theatro, depois do jornal, elle lá ia. Uma noite estivera no Grémio até á meia
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256 LISBOA DE HONTEM
noite, á meia noite sahiu: chegou ao Loreto, sentou-se num d'aquelles fra- des de pedra, que alli havia no tempo dos casebres, e adormeceu. Passou um amigo, pasmou de o ver alli, metteu-lhe o braço, e foram seguindo para a rua Formosa: elle ia a andar e a dormir: positivamente a dormir. Chegados a casa de D. Pedro, abriu os olhos, trepou pela escada, chegou lá acima, sentou-se n'um sophá e continuou a dormir ; mas já en- tão era o meio dormir a que elle era dado, um dormitar que o deixava ouvir, e lhe permittia julgar das opiniões que sohavam os que o julgavam adorme- cido, até o instante em que lhe fizesse conta entrar na conversação: d'esse mo- mento cm diante, ninguém mais fallava, o que queriam todos era ouvil-o.
LISBOA DE HONTEM 237
Não é fácil citar ditos seus. Cita a gente de memoria, ou mesmo pode citar de as ter lido, palavras que elle pronun- ciasse ; mas como hade dar-se a accen- tuação, o gesto, a voz vibrante, o olhar inspirado, que eram tudo n'elle?
Ahi está que os seus retratos, pare- cidos sempre, ainda assim não dão por nenhuma maneira idéa da abundância de vida, da força de organi sacão que admirava a todos que o viam. Quanta gente diz :
— Nunca vi o José Estevam, mas te- nho o retrato d'elle.
Em geral os retratos não servem se- não para dar um sentimento de tristesa a quem olha para elles. Não passam, to- dos elles, de epitaphios, que não dizem o que cada um foi e disfarçam o que é,
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258 LISBOA DE HONTEM
se ainda vive. Não sei como se possa gostar d'essas figurinhas passageiras, desligadas por que assim digamos da vida para virem immobilisar-se n'um cartão! É uma mentira, aquella immo- bilidade, dada a um ser que nem por momentos permanece o mesmo! Toca os nervos aquelle sorriso infatigável que não se sabe para quem é; dá tentações de se lhes fechar os olhos, que estão sem- pre abertos como os dos somnambulos, e seguem a gente para todos os lados sem nos verem.
Se com José Estevam quasi que não bastava vel-o, era preciso ouvil-o! Só d'esse modo era verdadeiramente ellel Quid si nionstrum audivisses^f Todo o orador superiormente inspirado é o monstro tão louvado por Eschino, que
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convinha ouvir para poder julgal-o, e vel-o para o entender! É a acção orató- ria para a eloquência o que os enfeites são para a formosura: mas a moda, que é a tiranna das bellas, perde aqui o seu poder; o orador brilha unicamente pelas qualidades que lhe sâo próprias, não as encommenda ao alfaiate nem á modista. A epocha ajudou-o : era o tempo das grandes audácias febris, que voaram já como as andorinhas, mas não voltaram como ellas. Calaram-se as grandes vo- zes : não sei se ha grandes peitos ainda. Tem vindo por ahi um ou outro, que nos tem dado não direi metade d'elle, como o Terêncio dera aos romanos segundo dizem metade de Menandro, isso seria muito, e poderia dizer-se-lhe «Para que dá tanto e tão pouco?» mas uns longes,
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conforme indicam as gazetas; entretanto, o povo ainda não chegou a dar por isso, e tem-os prejudicado sobretudo haver sempre a respeito d'*elles duas opiniões extremas : admiráveis do principio ao fim, para uns : do principio ao fim execráveis, para outros: levaria muito tempo averi- guar o caso, e. pelos modos, nâo tem valido a pena. O que distinguia José Es- tevam de um modo especial era aquelle dom do eslylo de improviso, saindo como a Palias antiga, armado e a sorrir, d'aquelle cérebro fecundo: exa- minal-o é quasi impossivel: era uma maneira única: vá lá desmanchar peça por peça, como se faz com um relógio, a composição grandiosa e artística dos seus discursos! Talvez, n'alguns pontos, me- cher-lhe, fosse quebral-a : era a inspi-
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ração de um talento superior, e de ura homem que confiava em si e no seu amor pela liberdade, pelas cousas nobres e sanefas, pela independência, e pela pá- tria ; um grande coração, um orador sem rival, uma natureza digna de que a hu- manidade tivesse d'ella orgulho.
Esse homem foi durante muitos an- nos uma verdadeira gloria de Portugal, e, o que chegou a valer mais, uma das nossas felicidades. A presença d'elle originava uma espécie de festa de fa- milia, confundiam-se com os antigos amigos os novos, e com estes os que se preparavam para o ser, de uma geração mais recente; tinha, para todos, o que de ordinário não é dado senão aos mo- ços, o previlegio de se ter esperanças n'elle, esperanças tão variadas como as
262 LISBOA DE HONTEM
qualidades eminentes de que a sua vida foi um longo desenvolvimento e um ma- gnifico testemunho, — e, entre ellás as mais vivas iam para o homem politico, porque tal era a corrente da época, e porque com esse titulo nos pertencia elle de um modo mais especial.
Já vae longe tudo isso: já fica ao longe essa Lisboa, sincera na sua gran- deza, grande na sua sinceridade.
Uma novidadesita que houvesse, en- tretinha por muito tempo, e todos a fa- ziam render com o annotal-a . . . Quando apparcceram phosphoros no mercado, mugimos esse caso como quem muge uma vacca, e todas as manhas tinha- mos coisas que contar a respeito do grande perigo que offereciam os palitos, que era como se lhes chamava, palitos
USBOA DE HONTEM 263
phosphoricos nos jornaes, palitos para accender lume na linguagem corrente. Que occasionavam incêndios, que iamos morrer todos queimados, que as socie- dades de seguros contra fogos protesta- vam contra isso nos paizes civilisados, que, para tudo terem de ruim, envene- navam os comestiveis. . . Citavam-se his- torias ; uma mulher que guardara o pão ao pé dos phosphoros, ceara com o marido, comendo do tal pão, e ambos haviam morrido horas depois . . . Um saloio deixara a cesta do seu fardel, e dentro d'ella uma caixa de phosphoros fechada, junto de uma meda de ce- vada: o sol incendiou os phosphoros, pegou o fogo na meda, e foi-se o fructo da seara.
Para recreio e chamariz do povo ti-
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nhamos os arraiaes: sempre duravam dois dias. N'essas festas, á noite, fogo de vistas, danças, folias, desordens, tu- multo, alarido, atropelementos no fugir, e pedrada brava. Ficavam sempre ca- beças abertas, caras quebradas, e o re- gedor desattendido.
Era muito moda também, de vez em quando, desancar os cabos de seguran- ça, apedrejar a tropa, e dar morras á guarda municipal, a mancipal, e ao D. Carlos Mascarenhas. Era o povo; e n'esse tempo o povo folgava á bruta, por não estar em moda serem brutos os das classes finas.
Á parte duas ou três casas grandes, dois ou três palácios, dois ou três salões, a vida do que se chama a sociedade era serena e modesta. As senhoras borda-
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vam, a matiz, quadros que agradavam muito; bordavam-se lenços, cabeções, faziam-se quadros de missanga, borda- vam-se outros a cabello, faziam-se cai- xas de flores de cera, gaiolas de fio de linha, flores bordadas sobre papel, pas- sarinhos bordados a canivete, barqui- nhos em casca de ovo . . .
As meninas portuguezas eram umas santinhas; quando muito, seroavam nos seus amores conversando de janella, mas, isso mesmo, com prudência, e es- tando detraz d'ellas a irmã mais velha ou uma tia.
Tudo que era nosso nos parecia bem. Até chegámos a convencer-nos que a sa- borosa musica portugueza podia ser a primeira em a gente querendo, e, para exemplo que confundisse todo o intento
266 USBOA DE HONTEM
absurdo e desnacional, andávamos sem- pre a cantar: O saloia dá-me um beijo!
Era a innocencia de uma povoação pacata ... Á noitinha fechavam-se as lojas... Toda a gente se recolhia cedo... Vivia-se contente assim.
N'isto appareceu a
Pollía
e ilhuninou-se a cidade
a g*az.
A impressão que estes dois factos produziram em Lisboa, foi de tal or- dem, e mudou logo tudo, mas tudo, tão de repente, que até o céo, limpo e trans- parente, que tinhamos, nunca mais foi como era ! . . .
FIM
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